25 de dezembro de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------ As cacimbas de Dona Nega

As cacimbas de Dona Nega

M
al quebravam as manhãs - num tempo nem muito distante deste, mas também não muito perto – e estávamos lá, nós os moradores da Rua São José, passando pelas veredas rumo às cacimbas de Dona Nega. Esta, uma senhorinha que hoje deve estar se não na casa dos oitenta anos, mas está quase lá. 
Das cacimbas de Dona Nega tiramos a água que, até um dia desses, sanou nossa sede. Sede de muita gente, não engane! As donas de casa estavam lá, arrodeadas das cacimbas, angariando um balde d’água, pelo amor de Deus. E os meninos também estavam lá, ah se não! Nós, os meninos, íamos a essas cacimbas, cedo da manhã, como escoltados de nossas casas por nossas mães, porque a água para a luta do dia era por nossa conta. Tinha-se que encher os vasilhames, e antes disso não estávamos livres para fazer fosse o que fosse.
E como só tinha água em dois lugares – ou na caixa de água salgada ou nas cacimbas da velinha Dona Nega, íamos a esta última opção. E eu ia, com os demais molecotes, pelas veredas buscar a água potável que Dona Nega não vendia, mas nos dava. Queria só um pagamento, que era ver as cacimbas limpas, bem cuidadas, porque ali, de fato, minava a água de beber.
E a gente toda se sentava ali, na beirada das cacimbas, esperando, com ilimitada paciência, a água minar. Até hoje eu me pergunto como é que minou tanta água; como é que, daquelas veias finas, minou tanta água. E era água de primeira, que carregávamos para casa como ouro líquido. De certo, era. Quem vive no Nordeste sabe!
Pelas veredas das cacimbas muita história acontecia. Não só das cacimbas de Dona Nega, mas também das do Atevalte. No inverno, quando a baixa toda enchia, era ali que as mulheres botavam a roupa para quarar. Depois de passado o inverno, os homens cavavam as cacimbas e delas saía nossa água. E na cavação todo mundo precisava ajudar, desde tirar a terra para fora até esgotar a água barrenta, até que uma aguinha limpinha começasse a jorrar. Também daquelas veredas fazíamos atalhos para chegar a escola do Alto Alegre mais ligeiro, e por ali também os meninos mais danados corriam para o Açude Velho, porque facilitava se esconderem de seus pais. E ainda ali se catava passarinho e lagartixa.
Ao redor da cacimba nos sentávamos, bastava virar o balde de zinco com os fundos para o alto, e ficávamos a ouvir a conversa do povo, esperando também que a nossa vez de encher o balde chegasse. Ali tinha de um tudo: conversa que ia e vinha, gargalhadas as mais exageradas, fofocas, alegria... Por aquelas veredas eu passei com o galão d’água, morre mais não morre; os baldes costumam ser maiores do que nós. Por aquelas veredas vi minha irmã puxando o cabelo outra menina. Ali, os meninos aprontavam muito. Ao redor das cacimbas de Dona Nega, fazíamos planos de roubar as mangas maduras.
Ninguém pode esquecer das cacimbas de Dona Nega. Da água que matou nossa sede, que nos tirou do aperreio. Cacimbas que marcaram a infância de tanta gente. Num tempo que era de penúria e dificuldade a gente lembra com alegria das cacimbas. Tempo bom e que só hoje descobrimos que o era. Agora, por não bebermos mais daquelas águas, não paguemos com ingratidão. Guardemo-las  como uma fotografia na parede. Com alegria, tristeza ou pesar de um tempo que se foi, é a memória que nos resta.

25/12/2017

29 de outubro de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------ O Menino Sem Nome



N
ão muito longe daqui tem um menino... um Menino Sem Nome. De batismo, não; está lá, no cartório, no livro tal, número tal, o nome desse menino. Para mim, todavia, ele é sem nome, porque o nome dele não posso dizer, não posso rasgar, na garganta, aos quatro cantos desse mundo. Porque dizer o nome do menino é dizer quem ele é e em que condições ele vive.
Outro dia eu soube que o Menino Sem Nome tinha levado uma surra e que estava com as costas vermelhas. E há, na mesma casa, também uma menina sem nome, que outro dia tivera febre devido uns supetões que sua mãe, a Mãe Sem Nome, lhe dera. Aí eu fiquei ralhando, silenciosamente; xinguei muito, mas também silenciosamente, os pais do Menino Sem Nome.
O menino sem nome, que dá trabalho na escola. Quem o ensinou a ser assim? O menino sem nome que, no primeiro impulso, agride a irmãzinha. Quem lhe exemplou esse triste ato? O Menino Sem Nome que sabe xingar e dizer tudo quanto não presta. Mas não é só tragédia esse menino, não. Eu descobri que ele gosta de livros porque, essa semana, eu li para ele. O Menino Sem Nome gosta de gato e de cachorro. Ah, como gosta!
Isso me faz pensar nas tantas crianças sem nome; nas crianças violentadas, nas crianças agredidas, nas crianças desrespeitadas até mesmo dentro das escolas, nas crianças excluídas até mesmo por quem não os poderia excluir; e fiquei pensando ainda que são crianças sem nome as crianças que não têm o que comer, que não leem, não brincam e que, em detrimento, veem o que a TV mostra e, pior ainda, assistem às cenas terríveis da vida real.
Eu fiquei, e ainda estou, pensando nas crianças que vivem dentro de suas casas como prisioneiras; que jazem, nas suas moradias, com vontade de não estarem ali, com vontade de até sumirem do mapa e serem um ponto a menos. O gato comeu o bolo dos meninos sem nome.
E sua família é vitimada, vitimada com as pestes do mundo. Por isso tenho piedade dela. As pestes do mundo, que são tantas, encantam até os que se dizem mais astutos. Imperfeito que sou, não culpo ninguém.
Vai ser o quê, daqui a pouco, esse Menino Sem Nome? Pergunta triste. Enquanto não tiver nome, não vai ser nada. Vai ser o que seus pais são hoje? É provável. Mas ele pode ser uma coisa melhor porque daqui a pouco, quando tivermos coragem, essas crianças vão ganhar um nome. Quando sairmos do nosso triste estado de comodismo, quando acordarmos do nosso sono e percebermos que ao nosso lado nem tudo está bem. Quando a esperança desencantar, daremos nome aos meninos sem nome.
28/10/2017


24 de outubro de 2017

Ao eterno mestre, com carinho



Q
uerido mestre,

Hoje é uma data especial,
Em que comemoramos o seu dia,
O Dia do Professor.

Professor, quero dizer o quanto és importante...
Para a escola, para a cidade, para o planeta.
Tu que me dás a tua sabedoria,
O conhecimento que tens das coisas,
Que me fazes viajar como nas asas de um cometa.

Tu, professor, que diante das minhas dificuldades
Não tens cruzado os braços;
Inventa uma coisa, inventa outra coisa...
Um giz aqui, um desenho ali,
Logo adiante, um traço.
Tu, um inventor de metodologias,
Tu, que vais sempre além das caligrafias,
Tu, que não te importas em te tornares,
Caso eu precise, um mágico, um palhaço.

Tu que ralhas, professor,
Tu que brigas comigo,
Que dizes: “não faça isso! Preste atenção”!
Tu, sempre querendo me chamar atenção
Para o melhor...

Tu que me desequilibras,
Deixando-me na dúvida,
Para que eu vá mais longe.
E me equilibra de novo,
Quando ri comigo
Quando eu supunha não poder mais rir.

Tu, que quando vais dormir,
Fica pensando na melhor forma de eu aprender.
Na verdade, eu sei que tu queres é me convencer,
Me convencer de que eu posso...
Que eu posso muito mais do que sobreviver,
Que eu posso lutar pelos meus sonhos,
E ser grande, crescer...

Tu, professor, que ficas assistindo a minha luta,
Na minha casa, na minha família, no meu espaço.
Tu que me entende, professor, tu que me entende...
E quando eu desmorono, tu vens com um abraço...

Tu que és ousado, professor,
Pois estás disposto, sempre, a pegar tuas armas
E ir à luta comigo.
E sempre que eu ganho, és tu o primeiro a comemorar.
E se eu perder... Mas eu não perco, professor, eu não perco...

Eu não perco porque tu me falas de Deus,
De amizade, de respeito, de amor,
De solidariedade, de diferença, de esperança...
Porque tu me dizes que os livros não bastam,
Porque me ensinas a ser gente,
Gente de valor.

Professor, nessa fração de segundo quero dizer: tu és importante!
Afinal, professor não é a profissão das profissões?
Não é o professor quem forma o juiz, o doutor?
Ninguém pode ser alguma coisa sem passar por ti, professor.

Saibas, ó mestre,
Que o que fazes por mim salário nenhum compensa.
Não temas dizer: “eu trabalho por amor”.
Isso não quer dizer que você não viva em função de um salário,
Isso quer dizer que, ao trabalhar por amor, você faz a diferença.
Obrigado é tudo que eu posso dizer, e sei que é pouco.
Obrigado por fazer a diferença nas nossas vidas!
Feliz Dia do Professor!




14 de agosto de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------- Poderia ser eu...


A Verônica Regina... Não preciso dizer por quê.

Aconteceu pela boca da noite. Não queiram saber o dia, porque não me lembro. Estava eu ali, sentado à calçada da igreja matriz, esperando o bonde. Ia à cidade próxima, trabalhar. E junto a mim tinha um mói de gente, os estudantes que, no mesmo bonde, iriam para as faculdades. E perto de nós, mas como se não fosse do mesmo mundo, havia o bêbado. O bêbado, não; havia o homem que tinha bebido.
Eu, como sou curioso e atento aos desamparados do mundo (não sei se é a expressão certa), àquilo que guarda porções maiores de poesia, estiquei os ouvidos e, de quando em vez, os olhos, em atenção à fala e aos movimentos do homem – do homem que bebera. Porque como está desamparado do mundo, mas não é, recorre sempre a quem o ampara: a bebida que, ardente, o empurra ladeira abaixo.
E por que bebera dizia umas verdades. E foi o ouvindo que eu o vi pela primeira vez, como um ser humano, de carne, osso, consciência e coração.
E o que ele dizia, na sua voz tonitruante? Falava de si. Falava sobre uma natureza, uma tal natureza que ninguém dominava. Era a sua natureza. Era o que era. Queria dizer que se pudesse, se dominava; queria dizer que se lhe aprouvesse, seria outro homem, bastava ter o poder para tal. Não disse exatamente assim, mas era isso.
Na voz suja pela angústia, falava do Brasil, como a querer falar de cada pessoa: que no Brasil não tem respeito. Era como se bradasse: as pessoas não me respeitam, porque sou como sou, um bêbado, um louco. Mas ele se enganava, pois deveria dizer: não querem me respeitar, porque estou como estou: bêbado, louco. Porque nessa vida, eu digo, como a encarnação de um filósofo existencialista: ninguém é nada; a gente está sendo, por um momento, alguma coisa. Para o bem ou para o mal – eu digo, mais uma vez.
E aquele desabafo me enterneceu tanto, que no caminho, escondido na escuridão do bonde, eu só pensei no bêbado homem. Pensei ainda nos risos e na zombaria que os homens bêbados que também jaziam ali atiravam sobre ele.
Pensei, e continuo pensando, que os bêbados merecem uma chance, pelo menos a chance de serem respeitados. As pessoas, para serem normais, precisam saber que aqueles que parecem um trapo são, na verdade, homens, homens subsumidos pela sorte ou pelo mundo. Eu pensei, e ainda penso, que todos nós necessitamos deixar de beber doses muito grandes desses males que nos embriagam: o orgulho, o desrespeito, a intolerância...
Eu fiquei pensando que poderia ser eu, e não ele, a estar naquela condição; e poderia ser também um parente meu, ou qualquer indivíduo, do menor ao mais alto escalão da sociedade. E martelou na minha cabeça essa ousada ideia: que às vezes a consciência vem melhor para os bêbados e os loucos do que para os que dizem ter o juízo certo. Porque quem zomba dos outros nunca esteve bem de saúde.

13 de Agosto de 2017


27 de julho de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------- A rua menina


Cheguei à rua em que moro no dia seis de abril de 2013. Eu me lembro muito bem. Havia dois moradores na esquina distante e dois defronte onde construí meu casebre. Era uma rua quase sem ninguém. Para todos os lados via-se a mataria. A princípio achei até bom, pois quase a vida toda eu morara na zona rural. Aquele lugar, ruazinha nova, prometia-me tranquilidade e conforto.
Após o casamento morei sete meses de aluguel e, assim que os tijolos da construção da casa própria começaram a ser empilhados, fiquei um tempo morando com minha sogra. Aí, um dia, tendo chegado da faculdade, arrumei um caminhão e carreguei a bagaceira toda para a nova casa. O sonho de não ser mais inquilino realizou-se.
Como na rua nova não tinha nada, nem energia elétrica próxima, nem água, nem calçamento, não foi muito fácil residir ali. Mas todas as más condições do módico espaço superavam, em léguas, o fato de não ter um lar próprio.
A rua ainda hoje oferece pouca coisa, salvo uma vista para o morro, belíssima e, por vezes, consoladora. Em tempos do verde, enche os olhos da gente.
Nós, os poucos moradores existentes, fizemos um “regime” de partilha. A energia vinha de uma casa só, e rachávamos o preço igualmente. Mas uma vez, tendo eu esquecido de apagar a luz incandescente do lado de fora, o homem que passava a energia disse-me:
--- Dá pra apagar a luz?
A ofensa não foi tanta como a vergonha. Depois, foi melhorando, colocaram um poste no pé da minha calçada. Agora, a energia da minha casa passa para outras duas. Até que outras melhorias aconteçam, vai ser assim.
Também um menino, o Marcos, vinha todos os dias para eu o ensinar a fazer as atividades da escola, uma vez seus pais não sabendo ler. Só que um dia os pais do menino botaram os móveis em cima de um caminhão, em uma hora repentina e sem avisar foram-se estrada a fora. A rua ficou uma pobreza.
A rua, hoje mais movimentada, vem sempre crescendo. Primeiros sinais de que não vai ficar muito boa. Aos poucos eu vou dando adeus à antiga tranquilidade. O barulho, em noites de festa (porque fizeram um clube), rouba-me o sono e o farfalhar das ideias. Por sorte, os meninos aqui e ali ainda brincam; por sorte há, uma vez ou outra, uma pequena picuinha. O latir dos cães, nas noites medrosas, é melhor que essas músicas sem sentido que os paredões infelizes tocam. E nas manhãs, o cantar dos galos, quando os ouço, soam-me como uma prosopopeia poética.
Eu vi ruas crescerem e tirarem muitos sonhos das crianças; o sonho de brincar; o sonho da gente grande, de poder sentar-se à calçada, sem medo ou pavor dos ladrões. E eu vou dizendo, em minhas vozes silenciosas: “cresce não, rua”! Sê sempre assim mesmo. Rua menina. Rua dos meninos. Eu sei que é pedido vão, ilusório e improvável. Além do pouco sentido em não desejar uma rua crescer. Eu só não quero uma rua seca de alegria, batida à chave. E alegria não tem muito a ver com barulho; tem mais a ver com liberdade de escutar o próprio barulho natural da vida.

27 de Julho de 2017.



18 de junho de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------- De baladeira em punho


          Quando menino, não sei se dez anos eu tinha, havia em mim um sonho que respirava a insensatez: queria conseguir matar passarinhos. Isso porque os camaradas eram donos dessa artimanha. Eles pareciam ter nascido afeitos àquela triste ação; mal miravam a baladeira e, logo diante de si, mornos e mortos os passarinhos deitavam ao chão.
Mas eu, não. Ia com eles, pelas quebradas, com o embornalzinho repleto de pedras. E vendo, não muito longe, um pacu, ou um azulão, ou uma rolinha de penas brancas... mirava a baladeira uma, duas, três ... dez vezes, mas os bichinhos voavam rumo ao alto celeste, fugindo, como a rir da minha falta de jeito.
Na serrinha da avó Chica também eu fazia miragens com o cruel estilingue. Todavia, não ia além dos sustos aos bonitos passarinhos, ainda sem os conseguir matar. E mais e mais eu me frustrava porque, me comparando aos outros moleques, achava aquilo uma tremenda incapacidade. De tempos em tempos sofria aquele martírio.
Agora, ao recorrer a essa lembrança antiga, percebo o quanto essa incapacidade contribuiu para erradicar um martírio ainda maior: a indelicadeza de, na infância, extinguir parte dessa espécie inconsciente e, em alto grau, inocente.
Matar passarinho ainda é costume, é moda feia de nossa cultura. Meninos, aqui e ali, não podem ver um bichinho de penas sacudindo as asas num galho de pau, que querer logo atirar pedras, qual se tivesses sido esculpidos para não viver muito.
Os meninos fazem uma chuva de pedras com a intenção de matar os passarinhos, tão ingênuos quanto os próprios pássaros. Mas também tão capazes de aprender o controverso dessa maldita arte. Não têm, assim, um grão de maldade. Enquanto nós, na idade adulta, não matamos nada, e nossa consciência é do jeito que é. Pequenos, os meninos mal orientados por gente grande, esticam a baladeira, tão inconscientes quanto seu alvo.
Hoje, pai que sou, digo ao pequerrucho lá de casa, mais apaixonado por passarinhos do que eu, da antilógica de se pôr a cabo, as suas vidas. Porque foram feitos para saírem em voo e em canto, sem liberdade, mas com direito à vida. Direito consolidado por mãos humanas, mas dado originalmente, por Deus. E se ele insistir com a ideia, rezo para que tenha a mesma falta de jeito com baladeiras.
E penso comigo: se tivesse sido profeta, escreveria: vão para o inferno todas as criancinhas que matam passarinhos e quaisquer outros animais, e que sequer esticarem baladeiras com esse propósito. E se fosse homem de leis, sancionaria a seguinte: está proibido o uso de baladeiras por meninos, salvo para acender o fogo de manhã e fazer café.

19 de Março de 2017



7 de maio de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------ Teoria sobre o agrado

       
É encantador ver no ser humano a alegria em agradar aos outros. Agradar com pouca coisa, mas que, pela atitude, fermenta-se. Assim, vejo conterrâneos meus lá dos confins da terra trazerem para um amigo da cidade umas bajes de feijão – raridade nos tempos de crise. Quando não é o feijão verde é o jerimum de casca verde-fartura, é a monstruosa espiga de milho colhida lá do monturo – primeira safra daquilo que melhor pode dar a terra. Tem também, e sempre, algum cozinhado de maxixe. Sempre uma ou outra coisa.
            Ocorre também que, às vezes, o agradado nem é um amigo, mas um mero conhecido que realizou um trato decente, maneira de dizer que com alegria prestou um favor. Nessa situação majestosa, sobressai-se a vontade de contentar.
            Outro dia, por exemplo, ajudei uma amiga a formatar um trabalho de pesquisa e, ao final, como eu dissesse que aquilo não me custava nada, deu-me ela uns torrões branquinhos de goma de mandioca. Tinha amealhado eu a merenda do dia seguinte, despretensiosamente. E ela, a amiga, deixava transparecer o contentamento.
            Mais recentemente, indo para o sítio com minha sogra, passamos na casa de uma senhorinha que, tomando a estrada, nos pediu para ver o que acontecera de errado ao seu telefone. Mexi de um lado e de outro, ouvindo a palestra na sala, porém o aparelho não deu bons sinais. Ainda assim, a boa senhora prometeu-nos um pedaço de queijo.
            Há pouco tempo não se fazia uma visita na casa de outrem sem levar de lá fosse o que fosse: uma manga madura, um punhado de farinha, dois ou três bolinhos de sequilho, meia dúzia de ovos de galinha. Era a maneira utilizada pelas pessoas para agradecer pela consideração.
            Essa delicadeza no querer agradar vem de onde? Da própria natureza? Rousseau diria o quê? Que sim. Eu não sei se natural, contudo sei que nas pequenas cidades é só o que a gente vê. Vê e acha bonito. Acha bonito e vai seguindo a moda. Agradar, nesses lugares, vem do berço, vem do costume, emanando daquilo que o ser humano tem de melhor. E eu fico pensando sobre o custo zero dessas atitudes, da ação de agradar. E se a moda pegasse geral, sonharíamos um destino melhor à humanidade, carente desses menores agrados.

5 de Abril de 2017


20 de abril de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------ O Pé da Serra



Enquanto passamos pelas estradas apertadas do Pé da Serra, em Via Sacra, no dia da Paixão de Cristo, vou relembrando cenas de um passado distante, vivido naquele lugar, que marcaram minha juventude e a de muitas outras pessoas.
A começar pelo açude, antes chamado por todos Açude da Emergência, de propriedade da família de seu Raimundo Maximino. Nas cheias do açude, juntava muita gente para tomar banho, porque quando sangrava era permitido. Desenhava-se uma paisagem encantadora a nossos olhos.
Daquele açude, em menino, carreguei muita água para a luta de casa. Ali também as mulheres da cidade lavaram a roupa da semana. Pouca gente não se servia daquela água. Pouco jovem, ali da redondeza, não “roubou” manga para comer com sal. Porque fartos pés de manga enraizavam-se naquele solo fértil. Naquela água semiamarelada pescávamos peixinhos para comer com farinha. Eram magros os peixes, mas a aventura da pescaria era boa para a meninada.
No Pé da Serra, em direção ao Morro da Cruz, há a estradinha apertada, toda em areia grossa e pedras. Estradinha que nossos pés cruzaram (e ainda cruzam) tantas vezes para subir o morro, ver as cheias dos açudes e ir aos umbuzais. Ao lado da estradinha, solos de pedra guardam a fertilidade. Por ali a água das chuvas corriam tranquilas, lavando nossos pés, desembocando no açude da Emergência.
Naquelas matas adentramos muitas vezes em busca dos umbus maduros, percorrendo as veredas. Também chamavam a atenção os pés de umburana e aroeira, cuja casca é medicinal.
Espécies próprias da caatinga jazem ali, no Pé da Serra. Pedras monstruosas, moldadas pela ação tempo e pela natureza posam naquele lugar. Pedras de uma aspereza peculiar, de uma beleza rara, que nos fascinam. Já foram objeto de mitos, povoando nossa imaginação.
Quando a Igreja Católica, na Campanha da Fraternidade, celebra a consciência ambiental e a valorização da biodiversidade, penso que o Pé da Serra verdadeiramente precisa ser um lugar sagrado, com tudo que há nele. Não só o nosso São Francisco de pedra que jaze no topo do Morro da Cruz, mas também suas árvores, seus animais, suas pedras, suas águas, suas estradas, seus frutos...
Preservar esse lugar é nosso dever como humanos, como cristãos e como cidadãos salitrenses. O Pé da Serra guarda muito de nossa origem. Tudo que nele existe é, além de tudo, uma manifestação da presença de Deus.


14 de Abril de 2017

3 de março de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------- A casa da memória

Ao adentar, como eu não fazia há algum tempo, na casinha verde desbotado onde minha avó materna morou por muitos anos, veio-me à mente algumas lembranças súbitas. Fica na Rua São Pedro, 372, no Centro da cidade. Mas antes preciso esclarecer o estado atual da minha avó: não dormiu seu sonho maior. Vive acolá, numa cadeirinha localizada por sob um pé de pau, numa rua que não é a dela; porém, determinada pela idade e sem muita saúde, foi expulsa pela vida de seu casebre.
Na sala, os dois sofás empoeirados pelo tempo dão a mesma aparência dos velhos tempos. Rodeiam-nos dois quadros antigos muito comtemplados por mim. Outros quadros, mas de um time de futebol, abraçam as pareces, enfileirados. Ali mesmo, ao lado da sala, havia um quartinho onde eu dormi tantas vezes, quando estava com a minha avó. Foi lá, nas madrugadas, que ouvi seus movimentos na cozinha, mulher madrugadora que sempre foi.
Naquela cozinha, apertadinha, a mesa e alguma cadeira são as mesmas. É também o mesmo o fogão vermelho, de trempe velha e fumacenta. Muito vapor saiu dali, e muita comida saborosa, inclusive o frango de sempre que eu tanto adorava. Naquele fogãozinho minha avó fez muito café forte para bebermos antes de subirmos a Serra, de madrugada e a pé, aonde íamos trabalhar e pegar passarinhos nas arapucas. Ali, na cozinha, era o lugar preferido dela para sentar-se, acender o cachimbo e fumar.
Colado á cozinha há o quartinho em que ela dormia. No canto esquerdo jazia uma mala velha, que os museus adorariam acolher, que guardava seus pertences. Uma caminha também cheia de velhice espremia-se lá, no outro canto. Ali cheguei tantas vezes, cedo da noite, chamando a velhinha:
--- Êh, não vai não! Isso é hora de dormir?
A areazinha também me lembra bons momentos. Os vizinhos punham-se sempre ali, enquanto minha avó estivesse. Ali falavam da vida alheia, sempre com muita risada. As pessoas sempre adoraram o humor da minha avó. Brincar e dizer pilhéria ainda é de seu gosto.
Olhando aquela casa tenho a sensação ilusória de que o tempo não passou, de que tudo é como antes. Naquela casa, assim como em outras, minha avó viveu boa parte de sua vida. É a casa da memória. Agora, onde reside, não tem muito o que mostrar. Está esquecida. Está sozinha, seus filhos criaram asas grandes de mais, foram-se pelo mundo. E dói-me a certeza de que um dia vou perder a única avó que tive. Uma grande mulher. Só não preciso esperar que ela se vá para dizer aos outros que a amo, de dizer o quanto ela representa na minha vida.
Certamente, aquela casinha vai se modificar. Mas a história dela passada não vai. Porque a história de nossas vidas pode ser esquecida pelas pessoas, mas nem o gargalo do tempo a destroí.

3/3/2017

31 de janeiro de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------ Aquela que ficou

Enquanto eu passar pela estrada que ruma à Serra, e vir a casinha ao lado da estrada, de cor verde desbotado, lembrar-me-ei daquela que foi grande nesta cidade, que se chamou Adilma Mendes.
Vou me lembrar daquela mulher mãe de sete filhos, aos quais soube dar amor sem limitações. Para eles trabalhou, corajosamente, para sustentar-lhes a preciosa vida. Como mãe, preocupou-se (isto está na essência das mães), mas também fez-se toda em alegria para com seus filhos. Em sua face de verdadeira mãe de família, foi imensamente feliz, por ter se entregado inteiramente e vivido de forma intensa cada momento, porque o amor foi o tempero utilizado por ela para dar sabor à vida.
Vou me lembrar daquela que tinha um café no centro da cidade. Lá atendia sem distinções a todos os transeuntes, de grande e de pouca influência. Cobrou não só o mesmo preço pelo café e pelo almoço, mas soube também rir o mesmo riso a todas as pessoas. Riso que, na verdade, expressão de vitalidade e de doçura. Quem pôde ir tantas vezes ao café de Adilma, decerto foi para provar a comida saborosa, uma vez tendo sido ela cozinheira de mão cheia; mas foi, do mesmo modo, para ouvir suas gaitadas e brincadeiras. Sobremesa para quem carrega a vida como um fardo nas costas.
Vou me lembrar daquela mulher trabalhadora, que nunca sossegou nem se deu ao desprazer de cruzar os braços, pois gostava de ganhar o pão de cada dias com o suor do próprio corpo.
Lembrar-me-ei da devota de Nossa Senhora: “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”. Rezadora incansável do terço. Confiou às Ave-Maria toda a sua trajetória. A Deus entregou sua casa e seus meninos. À igreja serviu frequentemente, sinal de sua obediência.
Não vou me esquecer daquela que ficou. Ficou na memória e no coração de todos aqueles que a conheceram. Porque os verdadeiramente grandes não partem. Depois que dormem, ficam, pois inesquecíveis se tornam. Adilma é a mulher que permanece. Permanece como exemplo de filha e de mãe exemplar; como aquela que foi guerreira e trabalhadora infatigável; permanece como aquela que se doou aos outros, amando sem dó; como aquela que soube partilhar; que soube respeitar os limites do mundo, confiando em Deus; aquela que, de cada momento, bom ou ruim, transformou em situações de alegria.
Quando nos lembrarmos de alguém que riu muito, lembremo-nos de Adilma Mendes. A impressão que tenho – uma quase certeza – é de que ela continua a rir. Ainda nos ensina a rir. E parece-me também que, lá onde está, no reino fantástico, não ri sozinha. Ri cercada de gente, tão alegre quanto sempre fora. Adilma ri enquanto nos espera. Ri porque sabe certa a experiência do reencontro.


29/1/2017

5 de janeiro de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------ Enterraram o cachorro ali



O fato mais triste que me aconteceu esta semana, não tem dois dias, foi um anúncio de morte por uma voz murmurante. Não foi morte de gente, não. Foi morte de cachorro. Um cachorro nunca visto por mim – ainda bem.
Eu ia saindo de moto fazer a compra do pão, mal nascera o dia. E de repente apressou o passo uma velhinha, minha vizinha, que quase não fala nada. Mas veio correndo para me dizer tudo isso:
--- Como é que pode, hem? Vou embora daqui, não aguento... O povo pega e enterra um cachorro logo na frente da casa dos outros – e dizia-me com um pingo de voz.
E chorava. Chorava de verdade. Eu não quis chorar também. Mas fiquei sentido. Fiquei muito sentido. Eu juro! Eu disse, numa meia voz, que concordava com ela, que os vizinhos erraram ao enterrar cachorro ali. Porém, na realidade eu nem sabia o que pensar. Pareço não saber ainda. E nem quero dizer nada. Porque tocou-me mais a dor da senhora, a sua angústia em seu murmurar.
Não que não eu tenha dó do cachorrinho. Não também que não me apavore saber que ao lado da minha casa tem um cão enterrado. É de benzer-se. Deixar o bichinho acabar-se ao sol, na boca dos urubus, é mais humano. Cão enterrado? Não combina.
Eu soube de outros casos assim, em que se enterravam animais brutos, como costumam dizer. Casos piores, em que se mata um cão só por ele ser bom de galinha. Nos sítios, quando um cachorro comete um grande crime, dão-lhe uma surra de arrepiar a gente. Ainda mais um cachorrinho morto, o que não vão fazer? A intenção não tem maldades, entretanto, saber que bem perto enrolaram o cachorro incomoda um pouco.

E a imagem da senhora, atônita por me denunciar aquela malvadeza, desestrutura-me. Piedade natural? Decerto. Eu não sei explicar porque isso tem tanta força sobre mim. Nem preciso. Tem coisas que explicadas perdem o sentido.

5/1/2017