As cacimbas de Dona Nega
M
|
al
quebravam as manhãs - num tempo nem muito distante deste, mas também não muito
perto – e estávamos lá, nós os moradores da Rua São José, passando pelas
veredas rumo às cacimbas de Dona Nega. Esta, uma senhorinha que hoje deve estar
se não na casa dos oitenta anos, mas está quase lá.
Das
cacimbas de Dona Nega tiramos a água que, até um dia desses, sanou nossa sede.
Sede de muita gente, não engane! As donas de casa estavam lá, arrodeadas das
cacimbas, angariando um balde d’água, pelo amor de Deus. E os meninos também
estavam lá, ah se não! Nós, os meninos, íamos a essas cacimbas, cedo da manhã,
como escoltados de nossas casas por nossas mães, porque a água para a luta do
dia era por nossa conta. Tinha-se que encher os vasilhames, e antes disso não
estávamos livres para fazer fosse o que fosse.
E como
só tinha água em dois lugares – ou na caixa de água salgada ou nas cacimbas da
velinha Dona Nega, íamos a esta última opção. E eu ia, com os demais molecotes,
pelas veredas buscar a água potável que Dona Nega não vendia, mas nos dava.
Queria só um pagamento, que era ver as cacimbas limpas, bem cuidadas, porque
ali, de fato, minava a água de beber.
E a
gente toda se sentava ali, na beirada das cacimbas, esperando, com ilimitada
paciência, a água minar. Até hoje eu me pergunto como é que minou tanta água;
como é que, daquelas veias finas, minou tanta água. E era água de primeira, que
carregávamos para casa como ouro líquido. De certo, era. Quem vive no Nordeste
sabe!
Pelas veredas
das cacimbas muita história acontecia. Não só das cacimbas de Dona Nega, mas
também das do Atevalte. No inverno, quando a baixa toda enchia, era ali que as
mulheres botavam a roupa para quarar. Depois de passado o inverno, os homens
cavavam as cacimbas e delas saía nossa água. E na cavação todo mundo precisava
ajudar, desde tirar a terra para fora até esgotar a água barrenta, até que uma
aguinha limpinha começasse a jorrar. Também daquelas veredas fazíamos atalhos
para chegar a escola do Alto Alegre mais ligeiro, e por ali também os meninos
mais danados corriam para o Açude Velho, porque facilitava se esconderem de
seus pais. E ainda ali se catava passarinho e lagartixa.
Ao
redor da cacimba nos sentávamos, bastava virar o balde de zinco com os fundos
para o alto, e ficávamos a ouvir a conversa do povo, esperando também que a
nossa vez de encher o balde chegasse. Ali tinha de um tudo: conversa que ia e
vinha, gargalhadas as mais exageradas, fofocas, alegria... Por aquelas veredas
eu passei com o galão d’água, morre mais não morre; os baldes costumam ser
maiores do que nós. Por aquelas veredas vi minha irmã puxando o cabelo outra
menina. Ali, os meninos aprontavam muito. Ao redor das cacimbas de Dona Nega,
fazíamos planos de roubar as mangas maduras.
Ninguém
pode esquecer das cacimbas de Dona Nega. Da água que matou nossa sede, que nos
tirou do aperreio. Cacimbas que marcaram a infância de tanta gente. Num tempo
que era de penúria e dificuldade a gente lembra com alegria das cacimbas. Tempo
bom e que só hoje descobrimos que o era. Agora, por não bebermos mais daquelas
águas, não paguemos com ingratidão. Guardemo-las como uma fotografia na parede. Com alegria, tristeza
ou pesar de um tempo que se foi, é a memória que nos resta.
25/12/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário