1 de outubro de 2014

Rita doida, Rita alegre

Eu sempre quis, me lembro agora, escrever algumas palavras sobre Rita doida. Doida como ela há tantas, mas nenhuma igual. Mas não é sua loucura particular que me interessa; é que, desde menino, conheço Rita doida, o que me ajudou a ter um respeito imenso por ela.
Rita doida nora sozinha numa casa de paredes mal pitadas e pequena, na Rua São Pedro. Parece muito fácil dizer: "Aquela é a Rita doida, abestalhada, que nem juízo tem". Isso porque também é muito fácil ignorar que a Rita doida perdeu seus dois meninos, teve uma quase-morte, um trauma existencial. O resultado foi aquele enlouquecer que a fez perder a razão. E que pai ou mãe não seria uma Rita doida sofrendo uma fatalidade assim? Aos poucos, Rita doida foi também perdendo a mãe e o pai, ficando desamparada, e a loucura foi como que se generalizando.
Alta noite, ela conversa só, em alta voz, como se acompanhada de mais gente. Ora chora, ora diz palavrões, briga, dá estridentes gargalhadas, mostra-se valente. Quando se torna diminuta a loucura e ela quer ter um pouco de consciência, conta histórias reais,vividas por si,onde ela figura como heroína. Sempre lembrando dos seus. Noutros momentos, já sumida a sanidade, imita fantasmas, faz rir aos outros, adultos e a meninada local.
Rita doida não faz mal nenhum. Há, na rua, gente insensata que amedronta as crianças: "Corre, que a Rita doida te pega". Rita até gosta das crianças, pois já a vi dando moedinhas a elas. Quando uma criança tem gazes, Rita vai na sua casa, dá um trago no cigarro e joga a fumaça no umbigo para ver se a doença some. Rita quer bem aos pequenos da rua. Mais doida que a Rita é quem a explora, mandando-a colocar água na cabeça em troca de restos de couro de galinha ou de uma cuia de farinha. Muito mais louco que ela é quem detesta criança na rua, é quem a faz ir ao cemitério, de madrugada,prometendo-lhe dinheiro. Todos os desumanos são doidos, muito mais doidos que a Rita doida. Muita gente que julga a Rita tem uma certa loucura e ainda não sabe.
É necessário que eu diga em que consiste a peculiar loucura da minha amiga: é que ela, tendo todas as razões possíveis para se entregar a depressão e padecer, é uma doida alegre. Alegre no sentido de que nada faz se lastimando, e eté (senão nos instantes de profunda inconsciência) vive normalmente, como uma pessoa dotada de todas as capacidades mentais. Rita alegre, e não doida. Rita alegre que sabe alegrar, que faz rir, que não joga pedra, nem corre atrás de ninguém. Rita é da rua, e uma loucura alegre, como a dela, pode servir de remédio. Por isso mesmo é que nunca tive pena ou dó da Rita, pois nela sempre vi pairada uma luz, uma alegria rara. É que eu fui me formando para compreender a grandeza dos que socialmente se apequenam.

01 de outubro de 2014