29 de maio de 2019

O nobel foi pra... Maria







U
m país que não tem o plano de assumir a educação como prioridade muito menos fará isso com a cultura. É o que primeiro reflito ao assistir ao as decisões tomadas pelo novo governo. Mas com felicidade sei que o governo não é só o presidente, nem só o ministro, e que além do governo há o povo de boa vontade e de compromisso, e esse povo sabe e conhece educação e faz cultura.
E nesse final de semana foi o que presenciei, através de uma ação muito grandiosa promovida pela secretaria de cultura da cidade de Salitre, num evento que homenageou os leitores da cidade, num total de 40. Durante o ano anterior, eles se destacaram por mais terem lido as obras disponíveis na biblioteca municipal.
E lá estava Maria, Maria e seus meninos, que estavam entre os homenageados.
Ela é uma senhora, leitora assídua da biblioteca. Um dia se deu conta de que, para ajudar os seus meninos nas tarefas da escola, decidiu-se a voltar para a sala de aula, matriculando-se na educação de jovens e adultos. E, como se não bastasse, fez uma carteirinha de leitor na biblioteca, e começou a pegar livros para ler.
Na casa de Maria muita gente lê, começando por ela. Tem coisa mais bonita?
A biblioteca ofereceu aos leitores pequenos mimos: um certificado de destaque, posto numa bem pintada réplica de madeira, juntamente com um copo. Enquanto as autoridades iam entregando os mimos às crianças e suas famílias, Maria mesma entregou aos seus meninos, e posou bem para a foto.
Maria é exemplo. Exemplo de que a idade ou a condição social não é impedimento para a leitura. Maria é retrato da ideia postada essa semana na rede social, que trazia o nome da escritora Ana Maria Machado, e que dizia: “O que leva uma criança a ler é o exemplo”. Mas nesse caso, as crianças de Maria é que lhe deram o exemplo.
Mas Maria é exemplo para as outras mães e para as outras famílias, pois estas precisam ornar sua rotina com livros e palavras. Precisam descobrir que ler é bom, é prazeroso e traz alegria.
Maria é grande, porque grande não é quem tem poder, e sim quem deixa entrar coisa boa na cabeça. Maria sabe que leitura educa, sabe que seus filhos serão grandes através do que encontram nos livros. Por isso o nobel de leitura vai para Maria. E todos nós precisamos seguir os passos dela; todos nós precisamos viajar livro adentro.

25/5/2019.

24 de maio de 2019

CRÔNICAS DA CIDADE - Maria da terra do boi

Foto: Verônica Aguiar



Meu nome é Maria Grosso. Mas Grosso é só nome, porque meu xerém é fino.
Quase sempre vivi por aqui, aonde o boi chegou. Meu tio foi quem deu nome a este lugar, mia fia! Mas vambora, que minha memória é só fiapo.
Quando vim para cá, em meados de não sei quando, aqui era um pedaço de chão muito bom, porém difícil, mia fia! De onde eu vim? Sei de nada não, eu não estou boa não... Maria, tu sabe? A tramontana me carregou para cá, é isso que importa.
Tá chovendo, mia fia. Ô chuva boa!
Pois é. Nessa terra do boi vinha gente daqui e dali, dessas quebradas de mundo de meu Deus. Vinha dançar a lata, no meio do terreiro... a gente botava um fogo, pra fazer luz na noite, e aí se agarrava homem com mulher. Aí a gente cantava aquela canção... Maria, como era que cantava?
Olha os relâmpagos! Virgem Maria!
Chega o povo por aqui, na minha casa, e quer saber os causos, as histórias. E eu, com a mente já feito uma cumbuca, vou narrando as coisas de que me lembro. De como um boi, tangido por seu dono, saiu do lado do Taque Novo, e veio parar aqui para beber a água da lagoa e ouvir os cantos da mãe d’água. Perguntam sobre as lendas, sobre o reisado, mas não me perguntam
sobre o que é ser negro, ou meus ouvidos estão mudos?
Meu nome é Maria Grosso, Maria da terra do boi. Negra e idosa. Negra. O que é ser negra? O que é ter essa pela tão exagerada de melanina? Negra, negra até morrer! Porque essas coisas que a natureza dá não se acabam, não fogem pelos caminhos como fugiu o boi de seu dono.
Maria, se acabou o relâmpago?
O que é ser negro num país como o nosso, ainda cheio de senzalas em que as correntes são o preconceito e o racismo? O que é ser negro numa cidade pequena, como esta, onde esses males ferozes também fazem morada? Males terríveis, que não morrem com o chá de mastruz que Maria arrancou aqui em casa.
Querem que eu diga sou negra? Eu sou negra. Negra. Mas pensam que é fácil dizer tal coisa? É não. É estranho que uma comunidade não queira se reconhecer como negra, como quilombola? Venha ser negro e me diga! Venha ter a pele que tenho. Pele que Deus me deu.
Meu nome é Maria Grosso, filha do povo que lutou para sobreviver – e ainda luta, e que foi e é importante na construção do país. Povo que foi roubado de seu chão e que aprendeu a ser brasileiro a duras penas.
Meu nome é Maria Grosso, e preciso aprender a dizer sem tristeza, em coro com o meu povo, “eu sou negro”. Me ensinem! Me ensinem valorizando minha gente, a sua cultura, os seus ritos, as suas histórias, desvendando o seu imaginário... Me ensinem! Olhando para a nossa condição atual, enxergando também as nossas necessidades, não esquecendo de ver a nossa pobreza material, que contrasta com a nossa riqueza cultural. Porque quando dissermos, juntos, “eu sou negro!”, com alegria e sem vergonha, todos nós vamos dançar juntos o reisado e vamos olhar para o presente com mais esperança, sabendo que no futuro os nossos descendentes viverão melhor do que nós. Nós sonhamos um dia não ter que baixar a cabeça por causa da cor da nossa pele. Isso não depende só de nós.
Meu nome é Maria Grosso. Negra. Idosa. Mulher. Maria da terra do boi.
Muito prazer!

13 de maio de 2019