27 de dezembro de 2014

As crenças nossas de cada dia

As crenças populares, que a filosofia e a ciência chamam de senso comum, estão constantemente presentes em nossa vida, no nosso dia a dia, e conseguem até deixar a nossa experiência mais significativa. A filosofia não despreza o saber da crença - nem o pode fazer -, mas a ele atribui significação, uma significação existencial.
Fora a filosofia, há a nossa vida, e ela sim é quem dá ao senso comum um sentido maior. Eu, por exemplo, cresci ouvindo minha mãe dizer que comer baião quente e tomar banho causava morte, o que se devia evitar; brigava também quando via a mim e a meus irmãos colocar as mãos na cabeça, pois segundo ela aquilo era agouro aos pais; e não se podia, ainda, almoçar ou jantar de cócoras, porque aquilo sinalizava o atraso. Todas essas crenças a minha mãe aprendeu com a sua mãe, que aprendeu com a mãe dela, que aprendera com outras mães.
Outras crenças nortearam o meu viver. Minha avó, ao almoço e janta, mistura a comida com farinha de mandioca, pois aprendeu que comer sem é comer escoteiro, e isso para ela significa algo maligno. Quando uma criança pequenina soluça muita gente diz: "Deus te dê água de batismo"; se essa mesma criança sentir dor no umbigo, mastigue-se cebola e ponha-se para umedecer. Não se varra a casa à noite, que azara. E não se guarde vassoura de trás da porta... Varrer os pés de outra pessoa, segundo aprendi, não traz casamento.
Tenho um tio que, quando lá em casa fazia-se a fogueira à noite, passava para conversar, e nas conversas rememorava o passado inteiro. Ensinou-nos uma experiência de mil anos: numa bacia com água, põe-se duas brasas, que representam um homem e uma mulher casados; a brasa que não afundar morrerá por último. As pessoas que assistiam ficavam mortos de medo daquela experiência.
Interessante é que esses saberes, essas crenças vão passando de geração a geração. Mesmo diante de tanta tecnologia e de desenvolvimento científico, mesmo diante de grandes novidades e do descartável, esses saberes não morrem; ao contrário, são revividos cada vez mais pelas pessoas. Há até filósofos que valorizam o senso comum, pelo seu caráter prático.
Particularmente, penso que tais crenças são imprescindíveis por darem à nossa vida aquele caráter misterioso que nos mobiliza. É o desafio que nos move: o desafio da vida, da morte, do medo. E as crenças são o modo que encontramos, muitas vezes, para conviver com esses desafios. As crenças só não podem ser o único modo de ver a vida, mas, fora isso, precisam enfeitar nosso viver e pôr de molho por um tempo a razão.

27 de dezembro de 2014.

16 de dezembro de 2014

A injustiça bem perto de nós

Eu não ia mais escrever crônica nenhuma este ano, mas me lembrei de um fato ocorrido recentemente que me incomodou, fazendo-me pensar que a injustiça está diariamente bem perto de nós, quando menos imaginamos, a vitimar alguém.
O fato foi este: um homem, meu vizinho, trabalhava para essa empresa que constrói asfalto e que está em nossa cidade, contratada pelo estado para realizar a obra de asfaltamento que liga o município ao Pernambuco; trabalhava, mas não trabalha mais, porque um dia o gerente disse: "Trabalharemos agora de domingo a domingo, sem dia de descanso". E o pobre homem, dentre tantos outros empregados, foi o único a dizer: "De modo nenhum, dia de domingo não trabalho nem pra minha mãe".Ocorreu que, realmente, ele não foi mesmo trabalhar no domingo,nem em dia nenhum: demitiram-no. 
Algum dogmático e alienado dirá que foi bem feito, pois quem é empregado deve saber obedecer ao patrão. Mas não é bem assim, porque se um homem diz que não quer trabalhar a semana inteira é porque, no mínimo, quer descansar com a família, ter um pouco de lazer e paz.
Ao ficar ciente desse fato, forma inumana de ditadura, cogitei que, como essa, há muitas outras formas de injustiça. Há, por exemplo, injustiça quando uma autoridade educacional ameaça: "Professora, se não me incluir o seu projeto não sai do papel"; há injustiça e opressão na voz do jornalista que diz: "Aqui, nessa rádio, só fala quem eu quiser"; há, entre outros modos, injustiça na voz satânica da presidente de sessão eleitoral  que usa de palavra violenta só porque alguém revida e quer esclarecimentos; injustos é o político que ordena aos funcionários contratados que votem em seu candidato, sob pena de perderem seu emprego.
A injustiça está tão perto de nós que é preciso um cuidado martelado para, de um lado, não sermos vítimas dela e, de outro lado, para não sermos nós os que faltam com a justiça. E que fique um último recado: ao diabo tudo e todos que tentam, para servirem unicamente a seus interesses, refrear a liberdade humana e ferir a dignidade das pessoas, porque, certamente, os injustos estão na condição de menoridade. A injustiça é uma patife. E os injustos, serão o quê?

14 de dezembro de 2014

7 de dezembro de 2014

Comigo ninguém pôde um dia

Quando pequeno, derrubei o guarda-louças de minha mãe, quebrando tudo o que havia nele e comprado a duras penas: uns copos de porcelana, uns pratos de vidro usados meramente quando alguém que não era de casa aparecia para os aperitivos, e objetos mais que costumam, por alguma razão, envaidecer as donas de casa.
Nestes dias, meu menino, de dois anos de idade, derrubou a estante da sala, já amolecida, de parafusos desencorajados, e, incontinenti, lembrei-me desse fato da minha infância.
Menino pequeno, não teve culpa de nada, movido pela curiosidade, pela criatividade de se esconder dentro do objeto, de explorar aquele ambiente... Do mesmo modo, também eu era pequeno e devia ter as outras qualidades, mas fui severamente castigado por meus pais, que quase enlouqueceram com o ocorrido. Levei umas cipoadas e mil e uma broncas deles, como a tradição mandava que se fizesse aos filhos marotos, donos da desordem e da inquietude.
Despertado por tudo isso e pelo que meu filho fez recentemente, penso que para ser efetivamente criança é necessário aprontar uma malinação grande. Grande, não, grandiosa! Ora! A mansidão não combina com ser criança. A passividade não há de contentar aos pequeninos. À criança é necessária nem que seja só uma oportunidade de realizar uma danação escandalosa, um feito extraordinário, uma obra miraculosa. 
Há uma expressão repetidamente utilizada pelos pais: "Com esse ninguém pode". É pronunciada em sentido negativo, porém devia ser uma espécie de elogio, porque um menino ou menina danados, com os quais "ninguém pode", estão inventando e reinventando-se o tempo todo em suas fases de aventura. Sorte da criança a quem se diz: "Com esse ninguém pode". Hoje, me dizem costumeiramente: "Manoel, que tranquilidade, hem"! Nem imaginam que um dia eu derrubei o guarda-louças da minha mãe, que levei surra de vassoura de garrancho por conta dos meus feitos. Nem sabem que já fui um menino com o qual, pelo menos uma vez na vida, ninguém podia. 
O meu desejo é que todas as crianças do mundo, mas sem correr risco de vida, sejam aquelas com quem ninguém pode, pois que pintando o sete no mundo é que podem, efetivamente, viver a plenitude da vida.

7 de dezembro de 2014