25 de dezembro de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------ As cacimbas de Dona Nega

As cacimbas de Dona Nega

M
al quebravam as manhãs - num tempo nem muito distante deste, mas também não muito perto – e estávamos lá, nós os moradores da Rua São José, passando pelas veredas rumo às cacimbas de Dona Nega. Esta, uma senhorinha que hoje deve estar se não na casa dos oitenta anos, mas está quase lá. 
Das cacimbas de Dona Nega tiramos a água que, até um dia desses, sanou nossa sede. Sede de muita gente, não engane! As donas de casa estavam lá, arrodeadas das cacimbas, angariando um balde d’água, pelo amor de Deus. E os meninos também estavam lá, ah se não! Nós, os meninos, íamos a essas cacimbas, cedo da manhã, como escoltados de nossas casas por nossas mães, porque a água para a luta do dia era por nossa conta. Tinha-se que encher os vasilhames, e antes disso não estávamos livres para fazer fosse o que fosse.
E como só tinha água em dois lugares – ou na caixa de água salgada ou nas cacimbas da velinha Dona Nega, íamos a esta última opção. E eu ia, com os demais molecotes, pelas veredas buscar a água potável que Dona Nega não vendia, mas nos dava. Queria só um pagamento, que era ver as cacimbas limpas, bem cuidadas, porque ali, de fato, minava a água de beber.
E a gente toda se sentava ali, na beirada das cacimbas, esperando, com ilimitada paciência, a água minar. Até hoje eu me pergunto como é que minou tanta água; como é que, daquelas veias finas, minou tanta água. E era água de primeira, que carregávamos para casa como ouro líquido. De certo, era. Quem vive no Nordeste sabe!
Pelas veredas das cacimbas muita história acontecia. Não só das cacimbas de Dona Nega, mas também das do Atevalte. No inverno, quando a baixa toda enchia, era ali que as mulheres botavam a roupa para quarar. Depois de passado o inverno, os homens cavavam as cacimbas e delas saía nossa água. E na cavação todo mundo precisava ajudar, desde tirar a terra para fora até esgotar a água barrenta, até que uma aguinha limpinha começasse a jorrar. Também daquelas veredas fazíamos atalhos para chegar a escola do Alto Alegre mais ligeiro, e por ali também os meninos mais danados corriam para o Açude Velho, porque facilitava se esconderem de seus pais. E ainda ali se catava passarinho e lagartixa.
Ao redor da cacimba nos sentávamos, bastava virar o balde de zinco com os fundos para o alto, e ficávamos a ouvir a conversa do povo, esperando também que a nossa vez de encher o balde chegasse. Ali tinha de um tudo: conversa que ia e vinha, gargalhadas as mais exageradas, fofocas, alegria... Por aquelas veredas eu passei com o galão d’água, morre mais não morre; os baldes costumam ser maiores do que nós. Por aquelas veredas vi minha irmã puxando o cabelo outra menina. Ali, os meninos aprontavam muito. Ao redor das cacimbas de Dona Nega, fazíamos planos de roubar as mangas maduras.
Ninguém pode esquecer das cacimbas de Dona Nega. Da água que matou nossa sede, que nos tirou do aperreio. Cacimbas que marcaram a infância de tanta gente. Num tempo que era de penúria e dificuldade a gente lembra com alegria das cacimbas. Tempo bom e que só hoje descobrimos que o era. Agora, por não bebermos mais daquelas águas, não paguemos com ingratidão. Guardemo-las  como uma fotografia na parede. Com alegria, tristeza ou pesar de um tempo que se foi, é a memória que nos resta.

25/12/2017