20 de fevereiro de 2019

CRÔNICAS DA CIDADE - Antigamente, na Rua São Pedro


V
ai deslizando a noite, em sua boniteza, e a gente, bem acomodada nas calçadas, escuta, boquiaberta, as histórias correntes na boca do povo. Causos reais de pessoas das adjacências, que narram, com certa saudade, os costumes mais remotos. E eu, interessado em toda sorte de memórias inerentes ao meu lugar, fico querendo saber. E me torno sabedor mesmo, porque em perguntar não sou pusilânime.
Hoje, por exemplo, uma pessoa me dissera certas coisas, relativas ao que era a Rua São Pedro nos idos de mil novecentos e antigamente. Ali, onde hoje desfila a avenida, com seus grandes postes e com sua pracinha em que meninos marotos desenham a infância, passava uma estradinha, de um lado a outro, e em derredor era possível ver as casas e os quintais, em número pequeno.
E por ali passavam as gentes, até uma tal de Ana da Boca Quente, que vendia de um tudo e, pela alcunha, devia gostar de milongas. Mas isso é difícil saber... E no estreito da rua havia a bodeguinha dos Alferes, para quem quisesse comprar o fumo ou a cachaça.
Ali mesmo, nessa avenida, ao invés do barulho incômodo de veículos e de paredões que teimam em tirar o sossego, não havia nada disso. No passado, as luzes dos postes iam embora às dez horas da noite, pois nessa hora exata alguém era pago para desligar o motor, e as pessoas quebravam para dentro, para abastecer suas lamparinas de querosene. Ouvia-se, pois, um fechar de portas danado.
Na Avenida São Pedro as casas se acavalam umas sobre as outras. Nenhuma criatura, a menos que componha o grupo dos habitantes veteranos, e mesmo assim precisa ter a memória sã, há de imaginar um barreiro logo ali, de onde as donas de casa enchiam os potes de aguinha boa de beber.
Ali ainda viu-se muita gente estupefata ante os meios de comunicação de massa, principalmente a televisão. Esta era objeto de grande admiração e fazia das varandas pequenas salas cinematográficas. Jovens que residiam na zona rural corriam a estrada para não perderem os filmes da tarde, na casa de algum parente. Tal parente precisava ter xerém grosso, porque televisão era filé.
Concorriam com a televisão o jipe e a picape de Seu Mundoca. Este carregava o povo para Campos Sales, contudo a disputa por um assento não era pequena: quem quisesse fazer essa viagem, que pedisse logo a preferência, pelo menos um quinze dias adiantado.
Essas informações a gente descobre em pé de calçada, com quem teve a sorte de ter vivido nesse tempo. E ao descobri-las, no entremeio da noite, há riso e deslumbramento. Há tanto por saber ainda, por descobrir. Mas quem quiser saber mais vá perguntar a Neci, que ela conta.
20/2/2019
           


10 de fevereiro de 2019

POEMA DE DOMINGO ------ Ninguém mesmo

NINGUÉM MESMO

Ninguém está livre,
por mais que queira,
de quebrar os dentes
e ficar banguela.

Não está nem estará 
livre de sentir uma
dor de dente
da gota serena.

E de noitinha
ter dor de ouvido
de soltar um gemido.

Quem comer mocotó de boi, 
em exagero,
não está livre de ir,
mais de uma vez,
ao banheiro.

Não se está livre
do beijo da abelha
nem da picada da
peçonhenta.

Ninguém está livre
do instinto animal.
Nem de, num golpe
de loucura,
confundir açúcar
com sal.

Ninguém está
livre de nada.
Nem mesmo de
levar uma topada
no barro e quebrar
os dentes.

Você está
numa estrada
e uma vaca pode,
por te confundir
com capim, correr
atrás de você. 

Um cão pode morder teu pé.
Um leão pode te assassinar.
Um burro pode te de dar um coice.
Você pode soltar um grito.

Qualquer um pode ficar sem emprego.
Qualquer um pode perder a vergonha.
Qualquer um pode amanhecer azedo.

Todo mundo está destinado a correr perigos.
Todo mundo fica velho um dia.
Não tem olho que não chore de tristeza.
Acidente, tragédia e fatalidade não escolhem gente.


Todo mundo vai até morrer.

Por isso... é bom deixar de bazófia.

3 de fevereiro de 2019

POEMA D3 DOMINGO ------ Tempo de Deus

TEMPO DE DEUS
Para Rosimeire Freitas

Tudo é o tempo de Deus,
Deus é o tempo de tudo.
Só quando Ele quiser
É que o poeta estará mudo.

De nada te podes queixar
Porque Ele te deu forte escudo.
Ele te ensinou a caminhar
E a dançar a valsa do mundo.

Tens paciência, corre à janela
E vês a Estrela que faz brilhar tudo.
Nenhum escultor desenhou
A ordem tão bela do mundo.

Sorris, danças, cantarolas...
E fazes tudo por inteiro,
Que no relógio do grande Poeta
Ninguém sabe onde jaze o ponteiro.

Tudo é o tempo de Deus,
Deus é o tempo de tudo.
E antes de Ele querer
Nenhum ser estará mudo.