Hoje veio-me a resposta a uma inquietação antiga: por que as crianças não gostam de ler? Esse problema nasceu de minhas observações, do que meus olhos alucinados veem no correr dos dias: na escola, as crianças não nutrem pelos livros o mesmo amor atribuído às brincadeiras; e nas suas casas, esticam as canelas por sobre o braço dos sofás, quando não se alongam no chão frio, esbugalhando os olhos para a televisão, e sequer abrem um livro para o conhecimento do mundo e das maravilhas que o preenchem.
Nisso é preciso caçar um culpado. Sim, porque todo problema tem uma causa. Não precisei pensar muito para compreender que, como não pode se responsabilizar por si mesma, a criancinha não pode ser a vilã da situação. Não pode porque a idade da razão ainda está no berço. Ela também não sabe o valor, a importância daquilo, antes de lhe dizerem, de lhe mostrem as possibilidades da coisa. Assim, culpados são os adultos, detentores do senso de responsabilidade e da educação dos menores. Os adultos, por menos entendidos que sejam, sabem algo sobre o poder do livro e da leitura sobre as pessoas, na formação de sua personalidade e identidade. Se os pais não souberem, porque seus pais não sabiam nem lhes mostraram, sabem os mestres de seus filhos. É dos adultos, portanto, o papel de incitar nas crianças essa sadia curiosidade.
Os pequenos - e isso é o forte de sua natureza - apresentam curiosidade àquilo que nós, adultos, apresentamos-lhes.
Hoje pela manhã minhas sobrinhas, por exemplo, ao me verem chegando a sua casa carregando uma magra sacola, ficaram me rondando para descobrirem o conteúdo dela. Ao mostrar-lhes, finalmente, aquele conteúdo, logo o pegaram, com o ânimo de quem recebe o doce preferido na boca. E abriram para ver os desenhos, as cores, as letras...
Não é culpada nenhuma criança sem gosto pela leitura; a culpa é daqueles cujo descuido não permitiu-lhes apresentar os livros; de quem não lhes ensinou a gostar, senão a amar os livros. Eis aí uma atividade que se pode se ensinar e se aprender, e bem se aprende quando se bem ensina. Pelo exemplo, pelo hábito, pela disciplina. A culpa é dos adultos, pois são eles quem podem ensinar aos pequenos essa maravilha; e quando forem maiores, por si mesmos, os pequeninos receberão os frutos da semente plantada em solo bom. E agradecerão ao agricultor que as quis cultivar.
12 de Novembro de 2016
12 de novembro de 2016
29 de junho de 2016
Que sorte a minha
Já não havia em mim vontade de escrever crônicas tem um
tempo, por crer não valer a pena, quem sabe. Mas o destino do escritor – ou do semi-escritor,
para não ser convencido aos olhos do leitor – é, quando se vê motivado por uma
tal questão, enredar uma linhas. Quer-se fugir a própria sorte, sem êxito em
consegui-lo.
A propósito, esta cronicazinha trata da sorte. O que é
sorte? Se representa aquilo que, de todo modo, está a não depender de mim, sorte
é algo que não tenho, que não me acompanha de forma frequente, ou que existe
sem nenhuma intensidade em meu viver. Essa semana eu confirmei isso. No sábado fiz uma prova de vestibular, até com
expectativa razoável de que passaria, mesmo sem estudar porque gosto da área
para a qual iria concorrer. Ocorreu-me, entretanto, a obrigatoriedade de
responder a questões de meu nenhum interesse, de matérias sem sal para mim,
exigindo não zerar em nenhuma delas (não digo o nome das matérias para não
constranger-me perante os leitores). Numas das matérias, respondi a duas
questões pensando as ter acertado e as restantes assinalei uma letra só. Ao
aferir depois, no gabarito, percebi logo o desastre cometido: nenhuma das
questões tinha como resposta correta a letra assinalada. E para completar, as
duas outras também estavam erradas. Muita sorte, não?
A sorte tem muito a ver com o destino, com o acaso. Do ponto
de vista Maquiavélico é ela, chamada de fortuna, que rege metade da vida dos
homens, não podendo sofrer interferência nenhuma, pois só a outra metade da
vida permite a ação humana, entendida como liberdade. Mas há outro pensar, mais
atual, e este define sorte como algo que exige a pessoa se preparar para quando
a ocasião ideal aparecer ela se dar bem. É muito diferente do ocorrido a mim.
Sorte, mesmo, parece que não a possuo. Do contrário, eu,
desde sempre, quis aprender a driblar a falta de sorte, assim como o goleiro,
muitas vezes, atira-se à bola ao invés de precisar adivinhar qual o rumo dela,
ainda que corra seus riscos. A falta de sorte, porém não me fez padecer; do
contrário, deu sentido ao meu estar no mundo, pois tão ruim quanto não ter
sorte é tê-la em excesso.
29 de junho de 2016
27 de fevereiro de 2016
Ó, Gilson!
Gilson é um menino morador nas bandas do Alto Alegre. Menino
de muitos irmãos, uns menores, outros maiores que ele. Só em danação nenhum é
mais, nenhum é menos. O pai de Gilson foi-se há um bocadinho de tempo. Mas tem
a mãe de Gilson, mulher direita que por sob o teto dos aviamentos senta-se aos
montes de mandioca para amealhar a vida dos filhos. Só que antes de ir
trabalhar, dia a dia, leva os filhos à escola.
Gilson estudava na escola quando para lá fui, dar aulas. Parece
que era danadinho, porque com os outros danados foi direcionado para mim. Ficou
no fundo da peneira com as outras crianças. Como a danação não bastasse, Gilson
também não conhecia as letras, como da mesma forma não conheciam os outros
pequeninos. E lá fui, pobre de mim, ensinar alguma coisa a todos eles.
Gilson, logo dada a ele a oportunidade, não parava quieto,
sem sossegar um instante, a não ser quando eu lhe punha a fazer uma atividade. Corria,
e era todo brincadeira.
---- Ó, Gilson!
E este meu “Ó Gilson”, ecoava na sala toda. O menino parava
com as espevitices, porém bastava eu pegar o giz e pôr alguma coisa no quadro,
estava lá o Gilson novamente, saltitando feito um canguruzinho.
---- Ó, Gilson!
Gilson não entendia as minhas broncas, assim como eu não
entendia aquela espontaneidade. E sem entender minha voz vibrava feito
campainha alucinada, querendo pôr ordem no Gilson:
---- Ó, Gilson!
Por que não sabia o que fosse um A, deixava o Gilson uns
minutinhos a mais na escola, depois que a meninada ia embora, para ensinar de
modo diferente ao Gilson. Fiz cartinhas como as de baralho na tentativa de
fazê-lo aprender. E Gilson gostava daquilo, ah como gostava.
---- Que letra é essa, Gilson?
---- Um J.
---- É nada! Um J é esse, ó. Que letra é essa?
---- Um M.
---- Muito bem.
Gilson era maroto, corria e saltava como ninguém, mas
gostava de responder ao que eu perguntava. Entregasse uma atividade, respondia
com gosto. Afilava a ponta dos cotocos de lápis, e ia com fome ao caderno. Contasse
uma história ao Gilson e ele metia uma gargalhada.
Como eu gostava de ver o Gilson responder perguntas.
---- Gilson, como é que se escreve a palavra bola?
---- Um b com o, bo...
Desenhar, desenhava
com vontade. O que ele não gostava mesmo era de não saber as coisas. E se não
soubesse, zangava-se.
---- Ó, Gilson!
Zangado, era outro menino. Zangado o Gilson, eu em meu
pouco preparo não o aguentava.
---- Ó, Gilson, vá para casa!
E lá vai o Gilson, escorraçado por mim, para casa. Não vai
de boa vontade, vai por eu o ter pego pelo braço e posto para fora. Gilson vai
frustrado, no final do ano ele vai me dizer isso.
Aquele “Ó, Gilson!”, repetido mil vezes por mim, já não
pode ser esquecido. Outros meninos da mesma escola, quando me viam passar,
gritavam-me:
---- Ó, Gilson!
Ao que eu ria. Só podia rir mesmo.
Tempos depois eu mandei uma bola para o Gilson. Ele me viu
na rua, na mesma época, e falou comigo com um sorriso do tamanho do mundo.
Nunca vi maior agradecimento.
Ele estuda na mesma escola, onde trabalho, mas em outro
horário. Não é mais o menino pequeno de antes, mas penso que não deixou de ser
menino. A danação, que é vida pura, não se deixa também sem mais nem menos.
Lembrar do Gilson me faz ter mais amor pela vida, pelas crianças, pela escola.
Por isso agora digo, para que nunca mais esqueça:
---- Ó, Gilson!
27 de fevereiro de 2016
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