23 de dezembro de 2018

POEMA DE DOMINGO ------ Para agora


PARA AGORA


Está aqui o que eu preciso
para o momento.
Nem menos, nem mais.

A palavra sempre vem
em sua justa medida.

À procura de uma sede,
a palavra põe-se ali,
a balançar-se na rede.

Ou que a sede a procure
já cheia de desespero.

Mas tenho aqui o necessário
a este momento:

porque a palavra não pode,
por justa que é,
ser esgotamento.

25 de outubro de 2018

A COISA MAIS TRISTE DO MUNDO


A coisa mais triste do mundo

A
 coisa mais triste do mundo é uma criança não saber o mínimo possível... A, B, C... Dá uma tristeza na alma, porque ela não escolhe não saber. E não sabe por quê? Lembre-se daquele menino, tão pouco consegue dizer. Quem quiser chorar, chore, pois é a coisa mais triste do mundo.
A coisa mais triste do mundo, quem consegue dizer? É os meninos e as meninas não saberem essa ofício pseudo-sagrado de lerem e escrever, porque os seus sonhos bonitos não expressam, pois não sabem dizer. Tem as matas, os rios, os cães, a vida... tudo por descrever. Tem os passarinhos no ar, as castanhas no pé de caju, coisas que dá pra contar. Tem o texto bonito, a ciência e a arte, os quais poderiam ler. Tudo que o seus olhos grandes até querem, mas mal conseguem ver. Não veem por quê? É triste não saber. Quem quiser chorar, é hora, pois é a coisa mais triste do mundo.
A coisa mais triste do mundo chama-se ignorância, e não importa se é no senhor com bigode, na senhora de bastãozinho, ou na criança. Aquela menina bonita, da escola, só tem mesmo a esperança de um dia aprender, como as outras crianças. Aquela menina não boa entendedora de pobreza nem de finanças, para quem, muitas vezes, a voz zangada de um professor ralha, ralha até quando cansa. Porque a gente, muitas vezes, a gente demora  a compreender que o não-saber engole até mesmo as esperanças, e engole quase tudo. Mas engole por quê? Quem quiser chorar, chore, pois é a coisa mais triste do mundo.
A coisa mais triste do mundo é a criança não ter o que comer. Porém, ela deseja, mas nem sempre querer é poder. E não pode por quê? E a pobrezinha o quanto sofre sem estar também alimentada de saber! Saber que a escola deve dar, pois não está no seu querer privar criança nenhuma de cultura e de saber. Porque saber ler, escrever, contar, interpretar, calcular... são como o arroz, o feijão, que todo homem e toda mulher comem e que são duma precisão... Pense naqueles pequeninos ainda não sagazmente alimentados... a Maria ou o Raimundo... e, caso queira, chore, pois é a coisa mais triste do mundo.
A coisa mais triste do mundo é ter sempre a criança algo por dizer, mas o seu mestre ou mestra não quererem disso saber. E não escutam por que aquela vida é assim, tendo a criança querendo contar, tintim por tintim... por que é tão medonha, por que é tão calada, por que sobe no muro, desenfreada, por que é tão rebelde... Tem tanto a dizer, e aguarda, e aguarda...
A coisa mais triste do mundo é quando o amor falta; amor pelos outros, outros como nós, independentemente de quem sejam, precisa estar sempre em alta; apor pelo que fazemos, alegres feito meninos peraltas. É essa falta de amor que tanta criança mata. Mata sem matar, mas fazendo-a perder a fala; mata não matando, mas a criança desaba, e põe-se a nadar em rios de quase nenhuma água; mata não matando, contudo cortando as suas asas. Quem não tem amor pelos pequenos, que chore, pois a falta de amor é a coisa mais grave e triste do mundo.
Mas o mal pode se ir ladeira abaixo. Há problemas numerosos, como os de educação, passíveis de reversão. Há de ser! O não-saber pode dar lugar ao saber. E, de repente, a criancinha que não via começa a ver, a que não sabia começa a saber, a que nada dizia inicia-se no exercício de dizer, e começa ainda a dar gargalhadas até não mais poder, porque agora já saber ler, contar, escrever, e tudo quanto é possível poder. E, nesse momento, todas as crianças podem rir, um riso tão profundo, e que riam mesmo, porque o saber é a coisa mais bonita e mais alegre do mundo.
25/10/2018.

29 de junho de 2018

CRÔNICAS DA CIDADE ------ Salitre, ó terra abençoada



"Salitre, ó terra abençoada
Por Deus amada, querida fulgurante"
(Hino Municipal)


D
e todo o hino de Salitre, a expressão “terra abençoada” é a que melhor nos define – nós, esse povo de fé.
Assim previu o Padin Ciço ao professar, segundo a gente de maior experiência, que Salitre havia de crescer muito e se tornar uma cidade grande. E ele acertou em cheio porque para isso caminhamos, graças a Deus.
Desconfie quem quiser, mas foram os cuidados do Alto que nos trouxeram até aqui. Sim, porque nosso povo sobreviveu a toda sorte de carências: carências materiais, dado que nossa gente, na sua quase totalidade, não tem riqueza; carências naturais, pois que graças à localização geográfica essa mesma gente enfrenta os dilemas da seca, grandes, porém menores que a vontade desse povo de ser feliz com o bocadinho que tem.
Foi com fé que os primeiros habitantes, aqui morando nas suas casinhas de taipa, plantaram mandioca. Com essa mesma fé sustentaram a cidade, fê-la crescer para todos os lados. A mandioca, se por um lado nunca enricou quem realmente trabalha, por outro lado jamais deixou homem nenhum passar fome nem morrer de miséria, nem os maiores, nem os menores.
Com fé, e provavelmente muita fé, as primeiras autoridades, lideradas por um homem, o Neoclides, acreditaram ser possível a liberdade, ser um povo com vontade própria. Daí a emancipação política, uma luta que deve ter sido difícil, mas tornada possível graças à fé do povo. Também com a mesma fé e a mesma determinação, outros homens continuaram e continuam a fazer os feitos políticos. 
Essa terra é realmente abençoada, porque tem enfrentado muita coisa. E isso não é mérito de um, de dois ou de meio dúzia de homens.  Cada salitrense, a seu modo, tem conquistado seu pão, sua farinha, tem sustentado sua família, tem enfrentado suas dores, tem se esquivado dos problemas... Se isso não é bênção, não sei o que é.
Independentemente da crença de nosso povo, católico ou evangélico, é a fé que nos une e que nos faz caminhar para a frente. Isso porque nós aprendemos, desde cedo, que sem Deus não podíamos viver bem.
Essa cidade, que agora completa trinta anos de idade, era antes só vereda e mata. Antes aqui passavam tropeiros para descansar por sob o tamboril grande; agora, as pessoas não só passam, ficam, porque Salitre é terra abençoada, terra que a gente ama e quer bem. Por termos fé, não desistimos de acreditar que no futuro seus filhos terão oportunidades, não desistimos de desejar o melhor para nossos irmãos.


29 de junho de 2018

6 de maio de 2018

CRÔNICAS DA CIDADE ------ Mulheres e aviamentos


D
esde nossa formação como gente, foi a mandioca que deu sustança à nossa barriga. Ela, inclusive, deu a tantas mulheres da cidade, a oportunidade de terem um trabalho, difícil e, muitas vezes, penoso, mas, enfim, um trabalho.
Daí lembrar a atividade das mulheres desta cidade por sob o teto dos aviamentos. Afinal de contas, a cidade é repleta deles, e foram eles os primeiros a abrigar as mulheres trabalhadoras, que fizeram de seu humilde ofício uma forma de sobrevivência e, além disso, a duras penas ergueram seus lares.
Nos aviamentos as mulheres, sempre humildes, pensativas, determinadas; entre alegria e dor, ódio e amor, com criatividade e ousadia, construíam o que comer de cada dia. Desde a madrugara até a incerta hora estavam  lá, gorejando, quem sabe, um fiapo de liberdade.
Os aviamentos se constituem, a meu ver, um laboratório de experiências humanas. Quanto acontecimento bom, mas também danoso, não se passou por sobre e envolta deles? Agarradas às batas da mandioca, as mulheres viveram, e ainda vivem, um amálgama de situações profundamente humanas.
Quantas intrigas não se fizeram, ali, a ver quem ficava com o monte maior de mandioca? E as fofocas, estas eram assíduas no dia a dia das raspadeiras. Mas, do mesmo modo, nasceram, no mirrado, entretanto rico espaço, amizades duradouras e ralações temperadas com a reciprocidade. Na convivência com homens, mulheres se casaram, constituíram família; e meninas, obrigadas pela ríspida vida ao trabalho precoce, aprenderam a ser grandes mulheres como suas mães que, tivesses a chance, dariam a elas uma vida melhor.
Vivendo mais nos aviamentos do que mesmo em casa, muitas senhoras ficaram famosas no seu ofício, por rasparem, no correr do dia, inumeráveis caçuás de alva mandioca. Isso porque eram donas desse ofício, aprendendo a exercê-lo com perfeição, salvo quando despregavam um pedaço do dedo.
Ali, nos aviamentos, mulheres puxaram faca para homens, a dizer para quanto prestavam; com voz determinada, ralhavam ante o preço tão desumano do caçuá de mandioca raspada; outras, exaustas não sei de quê, trocaram de marido, fugiram de suas casas, atirando fogo a tudo.
Graças aos aviamentos as mulheres, e até mesmo homens, com o preço da exploração, foi possível comprar o arroz, o feijão, a galinha. Para as raspadeiras o básico, e só ele, estava sempre em casa. Não havia armário, radiola, tvzinha e outras necessidades domésticas que não estivessem presentes nas casas das incansáveis guerreiras do lar. E triste do homem que não tivesse, à época, uma dessas guerreiras, graças a quem a vida a dois ou a muitos era sempre facilitada. Porque a mulher foi e sempre será a senhora do lar e da família; mesmo que queira ser, e seja, coisas bem maiores, não consegue deixar de assumir tais elementos como prioridade sua. E o que muitos precisam aprender é que isso nem as limita e nem as torna pequenas.
Voltando aos aviamentos... Os senhores que hoje são grandes, gozando de prestígio e de respeito, quer econômico, quer político, por acaso esquecem que foi com a ajuda das raspadeiras de mandioca que ganharam força para subir as escadas do bem estar? E nós, meninos e meninas de pés grandes, também nos esquecemos que nossas mães, enquanto pegávamos no lápis, labutavam para arraigar para nós o chinelo, a roupa e a comida? Ninguém pode esquecer... Ninguém pode esquecer...
É pena que o trabalho das raspadeiras de mandioca, assim como de outros ramos, foi sempre tido como menor, uma vez que nunca se pensou em dar a elas nenhum direito. E é uma pena grande, porque é com o suor de menores que se caminha, muitas vezes, a passos largos.

6 de Maio de 2018



2 de maio de 2018

CRÔNICAS DA CIDADE - Estão verdes




N
uma tardinha, se não fosse boca de noite já, apareceram uns homens na rua, vindos não sei de onde, e se alojaram numa construção, para passarem a noite. Carregavam mala e cuia, ao que pareceu estarem em viagem. Parece que o dono da construção permitiu a estadia deles ali. Os homens, tendo visto duas bonitas melancias, no terreno de um dos moradores da rua, rapidamente se encantaram, e, com água na boca, encaminharam-se ao dono das melancias, a pedir as frutas.
Pediram, aos demais moradores, outras coisas mais: um quilinho de arroz a uma senhora, um pouco de sal a outra, um isqueiro para acender o fogo provisório, uma lamparina velha, no baú de alguma anfitriã. Quase ninguém negou-lhes nenhum pedido, ou porque, nessas bandas não é da cultura do povo negar pouca coisa a quem quer que seja, ou porque gente estranha costuma causar certo medo.
Entretanto, receberam negativa do dono das melancias. Quando foram pedi-las, sobrepujou-se à mente deles uma decepção ante a resposta que obtiveram:
- Estão verdes – disse o dono.
Na manhã seguinte, quando acordou e foi ver a cor do dia, percebeu o senhorzinho que as melancias rechonchudas haviam desaparecido. Perto dali, os homens alojados na construção também havia sumido.
Ao saber disso, comentei lá em casa. E tudo o que fizemos foi rir. Porque, de fato, fora engraçado (que o proprietário das melancias não saiba). E, ao comentar, uma pessoa disse que os homens fizeram a parte deles, ao pedirem. E quase ninguém, para não dizer ninguém, acusou ou indivíduos de terem praticado roubo.
Lembrei-me, ao saber do ocorrido, da fábula “A raposa e as uvas”, do Esopo, em que uma raposa, ao avistar um belo cacho de uvas numa videira alta, justifica sua preguiça ou sua incapacidade de pegar as frutas, ao dizer para si mesma: “estão verdes”. Quando contei essa estória, ouvi grandes gargalhadas. E nem sei se pode existir conexão entre a fábula da vida real e a de Esopo.
Nesta última vemos como, em determinados momentos, procuramos amenizar o peso da nossa incapacidade de realizar algo. Naquela, há uma questão moral presente. De um lado, da parte de quem justifica sua má vontade em oferecer a melancia. De outro lado, daquele quem justifica um furto: roubou porque o homem não deu.
Mas e se as melancias estivessem verdes mesmo? Não sei. Pensem, pois, os moralistas! O que sei mesmo é que quem tiver, no seu quintalzinho, uma melancia, ou um jerimum, não dê mole, esconda bem escondido. Porque na calada da noite pode aparecer um esperto para conferir se está verde mesmo.

29 de Abril de 2018

10 de abril de 2018

Livro Cuia Grande: a história de Salitre para download

Livro Cuia Grande: a história de Salitre para download.

Cuia Grande: a história de Salitre

Livro protegido por direitos autorais. Ao citar o conteúdo, por favor colocar a referência abaixo.


SOUSA, Manoel Neto de. Cuia Grande: a história de Salitre. Pará de Minas - PA: Virtual Books, 2015.

25 de dezembro de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------ As cacimbas de Dona Nega

As cacimbas de Dona Nega

M
al quebravam as manhãs - num tempo nem muito distante deste, mas também não muito perto – e estávamos lá, nós os moradores da Rua São José, passando pelas veredas rumo às cacimbas de Dona Nega. Esta, uma senhorinha que hoje deve estar se não na casa dos oitenta anos, mas está quase lá. 
Das cacimbas de Dona Nega tiramos a água que, até um dia desses, sanou nossa sede. Sede de muita gente, não engane! As donas de casa estavam lá, arrodeadas das cacimbas, angariando um balde d’água, pelo amor de Deus. E os meninos também estavam lá, ah se não! Nós, os meninos, íamos a essas cacimbas, cedo da manhã, como escoltados de nossas casas por nossas mães, porque a água para a luta do dia era por nossa conta. Tinha-se que encher os vasilhames, e antes disso não estávamos livres para fazer fosse o que fosse.
E como só tinha água em dois lugares – ou na caixa de água salgada ou nas cacimbas da velinha Dona Nega, íamos a esta última opção. E eu ia, com os demais molecotes, pelas veredas buscar a água potável que Dona Nega não vendia, mas nos dava. Queria só um pagamento, que era ver as cacimbas limpas, bem cuidadas, porque ali, de fato, minava a água de beber.
E a gente toda se sentava ali, na beirada das cacimbas, esperando, com ilimitada paciência, a água minar. Até hoje eu me pergunto como é que minou tanta água; como é que, daquelas veias finas, minou tanta água. E era água de primeira, que carregávamos para casa como ouro líquido. De certo, era. Quem vive no Nordeste sabe!
Pelas veredas das cacimbas muita história acontecia. Não só das cacimbas de Dona Nega, mas também das do Atevalte. No inverno, quando a baixa toda enchia, era ali que as mulheres botavam a roupa para quarar. Depois de passado o inverno, os homens cavavam as cacimbas e delas saía nossa água. E na cavação todo mundo precisava ajudar, desde tirar a terra para fora até esgotar a água barrenta, até que uma aguinha limpinha começasse a jorrar. Também daquelas veredas fazíamos atalhos para chegar a escola do Alto Alegre mais ligeiro, e por ali também os meninos mais danados corriam para o Açude Velho, porque facilitava se esconderem de seus pais. E ainda ali se catava passarinho e lagartixa.
Ao redor da cacimba nos sentávamos, bastava virar o balde de zinco com os fundos para o alto, e ficávamos a ouvir a conversa do povo, esperando também que a nossa vez de encher o balde chegasse. Ali tinha de um tudo: conversa que ia e vinha, gargalhadas as mais exageradas, fofocas, alegria... Por aquelas veredas eu passei com o galão d’água, morre mais não morre; os baldes costumam ser maiores do que nós. Por aquelas veredas vi minha irmã puxando o cabelo outra menina. Ali, os meninos aprontavam muito. Ao redor das cacimbas de Dona Nega, fazíamos planos de roubar as mangas maduras.
Ninguém pode esquecer das cacimbas de Dona Nega. Da água que matou nossa sede, que nos tirou do aperreio. Cacimbas que marcaram a infância de tanta gente. Num tempo que era de penúria e dificuldade a gente lembra com alegria das cacimbas. Tempo bom e que só hoje descobrimos que o era. Agora, por não bebermos mais daquelas águas, não paguemos com ingratidão. Guardemo-las  como uma fotografia na parede. Com alegria, tristeza ou pesar de um tempo que se foi, é a memória que nos resta.

25/12/2017