6 de maio de 2018

CRÔNICAS DA CIDADE ------ Mulheres e aviamentos


D
esde nossa formação como gente, foi a mandioca que deu sustança à nossa barriga. Ela, inclusive, deu a tantas mulheres da cidade, a oportunidade de terem um trabalho, difícil e, muitas vezes, penoso, mas, enfim, um trabalho.
Daí lembrar a atividade das mulheres desta cidade por sob o teto dos aviamentos. Afinal de contas, a cidade é repleta deles, e foram eles os primeiros a abrigar as mulheres trabalhadoras, que fizeram de seu humilde ofício uma forma de sobrevivência e, além disso, a duras penas ergueram seus lares.
Nos aviamentos as mulheres, sempre humildes, pensativas, determinadas; entre alegria e dor, ódio e amor, com criatividade e ousadia, construíam o que comer de cada dia. Desde a madrugara até a incerta hora estavam  lá, gorejando, quem sabe, um fiapo de liberdade.
Os aviamentos se constituem, a meu ver, um laboratório de experiências humanas. Quanto acontecimento bom, mas também danoso, não se passou por sobre e envolta deles? Agarradas às batas da mandioca, as mulheres viveram, e ainda vivem, um amálgama de situações profundamente humanas.
Quantas intrigas não se fizeram, ali, a ver quem ficava com o monte maior de mandioca? E as fofocas, estas eram assíduas no dia a dia das raspadeiras. Mas, do mesmo modo, nasceram, no mirrado, entretanto rico espaço, amizades duradouras e ralações temperadas com a reciprocidade. Na convivência com homens, mulheres se casaram, constituíram família; e meninas, obrigadas pela ríspida vida ao trabalho precoce, aprenderam a ser grandes mulheres como suas mães que, tivesses a chance, dariam a elas uma vida melhor.
Vivendo mais nos aviamentos do que mesmo em casa, muitas senhoras ficaram famosas no seu ofício, por rasparem, no correr do dia, inumeráveis caçuás de alva mandioca. Isso porque eram donas desse ofício, aprendendo a exercê-lo com perfeição, salvo quando despregavam um pedaço do dedo.
Ali, nos aviamentos, mulheres puxaram faca para homens, a dizer para quanto prestavam; com voz determinada, ralhavam ante o preço tão desumano do caçuá de mandioca raspada; outras, exaustas não sei de quê, trocaram de marido, fugiram de suas casas, atirando fogo a tudo.
Graças aos aviamentos as mulheres, e até mesmo homens, com o preço da exploração, foi possível comprar o arroz, o feijão, a galinha. Para as raspadeiras o básico, e só ele, estava sempre em casa. Não havia armário, radiola, tvzinha e outras necessidades domésticas que não estivessem presentes nas casas das incansáveis guerreiras do lar. E triste do homem que não tivesse, à época, uma dessas guerreiras, graças a quem a vida a dois ou a muitos era sempre facilitada. Porque a mulher foi e sempre será a senhora do lar e da família; mesmo que queira ser, e seja, coisas bem maiores, não consegue deixar de assumir tais elementos como prioridade sua. E o que muitos precisam aprender é que isso nem as limita e nem as torna pequenas.
Voltando aos aviamentos... Os senhores que hoje são grandes, gozando de prestígio e de respeito, quer econômico, quer político, por acaso esquecem que foi com a ajuda das raspadeiras de mandioca que ganharam força para subir as escadas do bem estar? E nós, meninos e meninas de pés grandes, também nos esquecemos que nossas mães, enquanto pegávamos no lápis, labutavam para arraigar para nós o chinelo, a roupa e a comida? Ninguém pode esquecer... Ninguém pode esquecer...
É pena que o trabalho das raspadeiras de mandioca, assim como de outros ramos, foi sempre tido como menor, uma vez que nunca se pensou em dar a elas nenhum direito. E é uma pena grande, porque é com o suor de menores que se caminha, muitas vezes, a passos largos.

6 de Maio de 2018



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