5 de janeiro de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------ Enterraram o cachorro ali



O fato mais triste que me aconteceu esta semana, não tem dois dias, foi um anúncio de morte por uma voz murmurante. Não foi morte de gente, não. Foi morte de cachorro. Um cachorro nunca visto por mim – ainda bem.
Eu ia saindo de moto fazer a compra do pão, mal nascera o dia. E de repente apressou o passo uma velhinha, minha vizinha, que quase não fala nada. Mas veio correndo para me dizer tudo isso:
--- Como é que pode, hem? Vou embora daqui, não aguento... O povo pega e enterra um cachorro logo na frente da casa dos outros – e dizia-me com um pingo de voz.
E chorava. Chorava de verdade. Eu não quis chorar também. Mas fiquei sentido. Fiquei muito sentido. Eu juro! Eu disse, numa meia voz, que concordava com ela, que os vizinhos erraram ao enterrar cachorro ali. Porém, na realidade eu nem sabia o que pensar. Pareço não saber ainda. E nem quero dizer nada. Porque tocou-me mais a dor da senhora, a sua angústia em seu murmurar.
Não que não eu tenha dó do cachorrinho. Não também que não me apavore saber que ao lado da minha casa tem um cão enterrado. É de benzer-se. Deixar o bichinho acabar-se ao sol, na boca dos urubus, é mais humano. Cão enterrado? Não combina.
Eu soube de outros casos assim, em que se enterravam animais brutos, como costumam dizer. Casos piores, em que se mata um cão só por ele ser bom de galinha. Nos sítios, quando um cachorro comete um grande crime, dão-lhe uma surra de arrepiar a gente. Ainda mais um cachorrinho morto, o que não vão fazer? A intenção não tem maldades, entretanto, saber que bem perto enrolaram o cachorro incomoda um pouco.

E a imagem da senhora, atônita por me denunciar aquela malvadeza, desestrutura-me. Piedade natural? Decerto. Eu não sei explicar porque isso tem tanta força sobre mim. Nem preciso. Tem coisas que explicadas perdem o sentido.

5/1/2017

12 de novembro de 2016

A culpa é dos adultos

Hoje veio-me a resposta a uma inquietação antiga: por que as crianças não gostam de ler? Esse problema nasceu de minhas observações, do que meus olhos alucinados veem no correr dos dias: na escola, as crianças não nutrem pelos livros o mesmo amor atribuído às brincadeiras; e nas suas casas, esticam as canelas por sobre o braço dos sofás, quando não se alongam no chão frio, esbugalhando os olhos para a televisão, e sequer abrem um livro para o conhecimento do mundo e das maravilhas que o preenchem.
Nisso é preciso caçar um culpado. Sim, porque todo problema tem uma causa. Não precisei pensar muito para compreender que, como não pode se responsabilizar por si mesma, a criancinha não pode ser a vilã da situação. Não pode porque a idade da razão ainda está no berço. Ela também não sabe o valor, a importância daquilo, antes de lhe dizerem, de lhe mostrem as possibilidades da coisa. Assim, culpados são os adultos, detentores do senso de responsabilidade e da educação dos menores. Os adultos, por menos entendidos que sejam, sabem algo sobre o poder do livro e da leitura sobre as pessoas, na formação de sua personalidade e identidade. Se os pais não souberem, porque seus pais não sabiam nem lhes mostraram, sabem os mestres de seus filhos. É dos adultos, portanto, o papel de incitar nas crianças essa sadia curiosidade.
Os pequenos - e isso é o forte de sua natureza - apresentam curiosidade àquilo que nós, adultos, apresentamos-lhes.
Hoje pela manhã minhas sobrinhas, por exemplo, ao me verem chegando a sua casa carregando uma magra sacola, ficaram me rondando para descobrirem o conteúdo dela. Ao mostrar-lhes, finalmente, aquele conteúdo, logo o pegaram, com o ânimo de quem recebe o doce preferido na boca. E abriram para ver os desenhos, as cores, as letras...
Não é culpada nenhuma criança sem gosto pela leitura; a culpa é daqueles cujo descuido não permitiu-lhes apresentar os livros; de quem não lhes ensinou a gostar, senão a amar os livros. Eis aí uma atividade que se pode se ensinar e se aprender, e bem se aprende quando se bem ensina. Pelo exemplo, pelo hábito, pela disciplina. A culpa é dos adultos, pois são eles quem podem ensinar aos pequenos essa maravilha; e quando forem maiores, por si mesmos, os pequeninos receberão os frutos da semente plantada em solo bom. E agradecerão ao agricultor que as quis cultivar.

12 de Novembro de 2016

29 de junho de 2016

Que sorte a minha


Já não havia em mim vontade de escrever crônicas tem um tempo, por crer não valer a pena, quem sabe. Mas o destino do escritor – ou do semi-escritor, para não ser convencido aos olhos do leitor – é, quando se vê motivado por uma tal questão, enredar uma linhas. Quer-se fugir a própria sorte, sem êxito em consegui-lo.
A propósito, esta cronicazinha trata da sorte. O que é sorte? Se representa aquilo que, de todo modo, está a não depender de mim, sorte é algo que não tenho, que não me acompanha de forma frequente, ou que existe sem nenhuma intensidade em meu viver. Essa semana eu confirmei isso.  No sábado fiz uma prova de vestibular, até com expectativa razoável de que passaria, mesmo sem estudar porque gosto da área para a qual iria concorrer. Ocorreu-me, entretanto, a obrigatoriedade de responder a questões de meu nenhum interesse, de matérias sem sal para mim, exigindo não zerar em nenhuma delas (não digo o nome das matérias para não constranger-me perante os leitores). Numas das matérias, respondi a duas questões pensando as ter acertado e as restantes assinalei uma letra só. Ao aferir depois, no gabarito, percebi logo o desastre cometido: nenhuma das questões tinha como resposta correta a letra assinalada. E para completar, as duas outras também estavam erradas. Muita sorte, não?
A sorte tem muito a ver com o destino, com o acaso. Do ponto de vista Maquiavélico é ela, chamada de fortuna, que rege metade da vida dos homens, não podendo sofrer interferência nenhuma, pois só a outra metade da vida permite a ação humana, entendida como liberdade. Mas há outro pensar, mais atual, e este define sorte como algo que exige a pessoa se preparar para quando a ocasião ideal aparecer ela se dar bem. É muito diferente do ocorrido a mim.
Sorte, mesmo, parece que não a possuo. Do contrário, eu, desde sempre, quis aprender a driblar a falta de sorte, assim como o goleiro, muitas vezes, atira-se à bola ao invés de precisar adivinhar qual o rumo dela, ainda que corra seus riscos. A falta de sorte, porém não me fez padecer; do contrário, deu sentido ao meu estar no mundo, pois tão ruim quanto não ter sorte é tê-la em excesso.

29 de junho de 2016



27 de fevereiro de 2016

Ó, Gilson!


Gilson é um menino morador nas bandas do Alto Alegre. Menino de muitos irmãos, uns menores, outros maiores que ele. Só em danação nenhum é mais, nenhum é menos. O pai de Gilson foi-se há um bocadinho de tempo. Mas tem a mãe de Gilson, mulher direita que por sob o teto dos aviamentos senta-se aos montes de mandioca para amealhar a vida dos filhos. Só que antes de ir trabalhar, dia a dia, leva os filhos à escola.
Gilson estudava na escola quando para lá fui, dar aulas. Parece que era danadinho, porque com os outros danados foi direcionado para mim. Ficou no fundo da peneira com as outras crianças. Como a danação não bastasse, Gilson também não conhecia as letras, como da mesma forma não conheciam os outros pequeninos. E lá fui, pobre de mim, ensinar alguma coisa a todos eles.
Gilson, logo dada a ele a oportunidade, não parava quieto, sem sossegar um instante, a não ser quando eu lhe punha a fazer uma atividade. Corria, e era todo brincadeira.
---- Ó, Gilson!
E este meu “Ó Gilson”, ecoava na sala toda. O menino parava com as espevitices, porém bastava eu pegar o giz e pôr alguma coisa no quadro, estava lá o Gilson novamente, saltitando feito um canguruzinho.
---- Ó, Gilson!
Gilson não entendia as minhas broncas, assim como eu não entendia aquela espontaneidade. E sem entender minha voz vibrava feito campainha alucinada, querendo pôr ordem no Gilson:
---- Ó, Gilson!
Por que não sabia o que fosse um A, deixava o Gilson uns minutinhos a mais na escola, depois que a meninada ia embora, para ensinar de modo diferente ao Gilson. Fiz cartinhas como as de baralho na tentativa de fazê-lo aprender. E Gilson gostava daquilo, ah como gostava.
---- Que letra é essa, Gilson?
---- Um J.
---- É nada! Um J é esse, ó. Que letra é essa?
---- Um M.
---- Muito bem.
Gilson era maroto, corria e saltava como ninguém, mas gostava de responder ao que eu perguntava. Entregasse uma atividade, respondia com gosto. Afilava a ponta dos cotocos de lápis, e ia com fome ao caderno. Contasse uma história ao Gilson e ele metia uma gargalhada.
Como eu gostava de ver o Gilson responder perguntas.
---- Gilson, como é que se escreve a palavra bola?
---- Um b com o, bo...
 Desenhar, desenhava com vontade. O que ele não gostava mesmo era de não saber as coisas. E se não soubesse, zangava-se.
---- Ó, Gilson!
Zangado, era outro menino. Zangado o Gilson, eu em meu pouco preparo não o aguentava.
---- Ó, Gilson, vá para casa!
E lá vai o Gilson, escorraçado por mim, para casa. Não vai de boa vontade, vai por eu o ter pego pelo braço e posto para fora. Gilson vai frustrado, no final do ano ele vai me dizer isso.
Aquele “Ó, Gilson!”, repetido mil vezes por mim, já não pode ser esquecido. Outros meninos da mesma escola, quando me viam passar, gritavam-me:
---- Ó, Gilson!
Ao que eu ria. Só podia rir mesmo.
Tempos depois eu mandei uma bola para o Gilson. Ele me viu na rua, na mesma época, e falou comigo com um sorriso do tamanho do mundo. Nunca vi maior agradecimento.
Ele estuda na mesma escola, onde trabalho, mas em outro horário. Não é mais o menino pequeno de antes, mas penso que não deixou de ser menino. A danação, que é vida pura, não se deixa também sem mais nem menos. Lembrar do Gilson me faz ter mais amor pela vida, pelas crianças, pela escola. Por isso agora digo, para que nunca mais esqueça:
---- Ó, Gilson!

27 de fevereiro de 2016



30 de dezembro de 2015

Os meninos jogam bola na rua em que moro

À tardinha, os meninos jogam bola na rua em que moro. Há, por parte deles, uma algazarra tremenda, mas é um barulho que energiza a rua, envivecendo-a. A alegria é constante e me faz lembrar de meu tempo de menino, em que havia também muito movimento nos campinhos de futebol.
A rua daquele tempo é aquela que já não existe. Foi-se no gargalo do tempo, só a memória sabe dela. Era uma rua de muitas brincadeiras que enlaçavam a criançada. Brincadeiras, brigas e pequenas intrigas entre os moleques; intrigas sem maldades, naturalíssimas. De todas as brincadeiras, o jogo de bola estava lá, disponível a todos os garotos.
Os campinhos se localizavam, quase todos, nos outões das casas, pertinho mesmo, no centro da rua. Assim, não havia momento de vadiagem em que não corrêssemos para lá, para correr atrás da bola, nem que fosse por um instantinho só. Se alguém vinha brigar conosco devido ao barulho, corríamos a construir outro campo, e todo mundo ia, como se jogar bola fosse sagrado.
Nós, moleques em idade de querer se mostrar, queríamos, todos, ser bons jogadores, para que quando chegasse a vez de um menino qualquer montar seu time, nos escolhesse. E os artilheiros? Nossa como eram disputados. O Cicinho jogava muito bem. Era, por isso mesmo, quem mais levava escorões e caneladas. Também era o mais enraivado dos meninos. Como possuía a melhor das propriedades - a bola -, e sendo também quem mais sabia dar dribles, não queria ficar partida sem jogar.
A jogada entrava nas bocas de noites. Nada paralisava os jogos de bola, nem mesmo a voz às vezes zangada de nossos pais a nos chamar para cumprir alguma tarefa. Nem sequer as queríamos ouvir, tão grande se fazia nossa alegria, como se a felicidade do mundo fosse aquilo tudo: uma bola.
Os meninos jogam bola e me trazem boas recordações. Me lembram que os jogos de bola coroaram, em sentido de consagração, a infância e juventude de tantos meninos, num tempo facílimo de se iludir com a vida. Aqueles jogos de bola serviam para amenizar a rudeza das nossas experiências pessoais. Jogar bola era o momento de esvair a lassidão dos nossos dias. Éramos, por um momento, meninos alegres apenas com uma bola: nem que fosse só para correr atrás dela.

30 de dezembro de 2015.

20 de novembro de 2015

Dia de lembrar das lutas...

Ao comemorarmos o Dia da Consciência Negra, data histórica no nosso calendário brasileiro, o fazemos não compreendendo que o negro seja um coitadinho, e sim que  ele teve e tem importância fundamental na constituição do nosso povo. Compreendemos que em nossas batalhas e lutas que nos trouxeram conquistas de direitos fundamentais sempre está presente a marca dos afrodescendentes. Marca que está também em nossa personalidade, em nosso caráter, em nossa predisposição para vencer.
Temos sorte porque temos uma comunidade como a Lagoa dos Crioulos que muito nos enriquece e nos orgulha com seus traços culturais. Apesar de pouco valorizada, a Lagoa dos Crioulos é expressiva em manifestações artísticas, religiosas e lendárias. Suas lendas nos fascinam completamente. Seus habitantes nos dão uma verdadeira lição de humildade e sobrevivência. Nesse sentido, nesta pequena ação que hoje realizamos, homenageamos a comunidade quilombola de Lagoa dos Crioulos.
Neste Dia da Consciência Negra, cabe-nos lembrar que os afrodescendentes originários são um povo que aqui no Brasil chegaram, vindo à força, e logo procuraram se adaptar aos costumes predominantes, porém também contribuíram com a sua cultura, seu modo de ser, suas crenças, saberes e lutas. Cabe-nos lembrar, mais que tudo, de suas batalhas por dignidade, por igualdade, pelo direito à liberdade, por valorização enquanto seres humanos.
É com vergonha que devemos lembrar também que os negros brasileiros já foram escravizados, por muito tempo submetidos ao trabalho forçado, servindo de propriedade alheia; que já foram maltratados, surrados e até mortos nas senzalas desumanas. Porém, com alegria, lembremo-nos ainda que esses mesmos que na história foram magoados também souberam lutar contra a dor e a opressão; muitos deram seu sangue em prol do reconhecimento de seu valor e de sua dignidade humana.
Lembremo-nos, por fim, que essa história de luta dos afrodescendentes por direitos e igualdade ainda não teve fim. Afinal, ainda vemos diariamente práticas preconceituosas e racistas contra essa população guerreira. Práticas irracionais e desumanas que ferem essas pessoas historicamente marginalizadas. Assim, é necessário lutar cada vez mais para entender que o preconceito e o racismo são posturas vergonhosas, que nada pode justificar. Mas essa luta que antes parecia só dos negros hoje é de todos nós, porque os negros são parte do que somos, de tal forma que se alguma coisa ou alguém os ferir estará também este algo ou alguém ferindo a alma de todos nós. É uma luta árdua, que faremos dia a dia, mas que não pode ficar só em palavras, e sim em atos.

Não existem raças distintas, a raça é uma só: a raça humana. Não é a cor da pele que definirá a grandeza das pessoas, e sim a condição de sermos pessoas e o nosso histórico de lutas. Tudo isso, nós negros temos de sobra. Que ninguém se culpe por sua cor, pois a grandeza humana está além, muito além da pele.

Mensagem proferida no Dia da Consciência Negra, no Primeiro Evento de Cultura Afro-brasileira na escola José Valdemar de Alcântara e Silva.

1 de novembro de 2015

Ela não nos criou

De vez em quando, na escola ou noutros espaços sociais, defronto-me com gente de pensamento grande, de mente aberta e de atitude crítica perante situações preocupantes, senão caóticas. Numa dessas, enquanto eu dava aulas numa turma, perguntei a uma aluna o que a preocupava. Sua resposta me permitiu pensar, repensar e pensar ainda um pouco. Ela me disse que já não suportava mais a intensidade com que as pessoas utilizam os aparelhos celulares, alheando-se dos acontecimentos em tempo real e das outras pessoas.
Aquilo me impressionou muito. Me impressionou a ponto de eu questionar se realmente a tecnologia representa mesmo um avanço ou um retrocesso na vida dos homens. Daí veio a percepção de que se a tectonologia induz os indivíduos a esquecerem de si mesmos, a fugir de suas circunstâncias, a desviarem-se das coisas reais e dos outros, ela não pode ser positiva. Não pode porque desumaniza, porque mumifica, por um tempo, a possibilidade de se fazer humano.
Quanto mais os dedos vão deslizando, de clique em clique, mais os sujeitos vão sendo apoderados pela dimensão virtual, oportunizando à tecnologia o domínio sobre o homem. Dominação facilmente percebida no uso descontrolado e faminto de aparelhos e redes.
Não se pode falar em evolução quando a elegante tecnologia substitui as relações autenticamente humanas. Evoluídos parecem os povos que nunca a tiveram. Por isso que, às vezes, quanto mais as pessoas sonham com luz mais permanecem na escuridão.
Quando eu fui criança e adolescente morei no campo, e o que alegrava as noites era a caminhada pelas estradas semi-escuras, rumo a casa dos vizinhos para conversar e tomar café ao redor de fogueiras. Em casa, nada nos tomava o fôlego para conversar, nada nos desviava dos outros. Só que com a chegada da luz elétrica, da televisão, as relações se modificaram. A harmonia virou caos. Já não se faz visitas a ninguém, e tem horas que a conversa vira mudez de múmia.
Não é mal que essa lógica tenha que se inverter. A tecnologia não se criou para nos dominar, mas sim para ser dominada por nós. E a dominamos se não a deixamos nos roubar a humanidade, se não lhe permitimos dirimir o aconchego do outro, se a controlarmos a ponto de usar seu potencial criativo para realizar nossas possibilidades humanas. 

1 de novembro de 2015