Gilson é um menino morador nas bandas do Alto Alegre. Menino
de muitos irmãos, uns menores, outros maiores que ele. Só em danação nenhum é
mais, nenhum é menos. O pai de Gilson foi-se há um bocadinho de tempo. Mas tem
a mãe de Gilson, mulher direita que por sob o teto dos aviamentos senta-se aos
montes de mandioca para amealhar a vida dos filhos. Só que antes de ir
trabalhar, dia a dia, leva os filhos à escola.
Gilson estudava na escola quando para lá fui, dar aulas. Parece
que era danadinho, porque com os outros danados foi direcionado para mim. Ficou
no fundo da peneira com as outras crianças. Como a danação não bastasse, Gilson
também não conhecia as letras, como da mesma forma não conheciam os outros
pequeninos. E lá fui, pobre de mim, ensinar alguma coisa a todos eles.
Gilson, logo dada a ele a oportunidade, não parava quieto,
sem sossegar um instante, a não ser quando eu lhe punha a fazer uma atividade. Corria,
e era todo brincadeira.
---- Ó, Gilson!
E este meu “Ó Gilson”, ecoava na sala toda. O menino parava
com as espevitices, porém bastava eu pegar o giz e pôr alguma coisa no quadro,
estava lá o Gilson novamente, saltitando feito um canguruzinho.
---- Ó, Gilson!
Gilson não entendia as minhas broncas, assim como eu não
entendia aquela espontaneidade. E sem entender minha voz vibrava feito
campainha alucinada, querendo pôr ordem no Gilson:
---- Ó, Gilson!
Por que não sabia o que fosse um A, deixava o Gilson uns
minutinhos a mais na escola, depois que a meninada ia embora, para ensinar de
modo diferente ao Gilson. Fiz cartinhas como as de baralho na tentativa de
fazê-lo aprender. E Gilson gostava daquilo, ah como gostava.
---- Que letra é essa, Gilson?
---- Um J.
---- É nada! Um J é esse, ó. Que letra é essa?
---- Um M.
---- Muito bem.
Gilson era maroto, corria e saltava como ninguém, mas
gostava de responder ao que eu perguntava. Entregasse uma atividade, respondia
com gosto. Afilava a ponta dos cotocos de lápis, e ia com fome ao caderno. Contasse
uma história ao Gilson e ele metia uma gargalhada.
Como eu gostava de ver o Gilson responder perguntas.
---- Gilson, como é que se escreve a palavra bola?
---- Um b com o, bo...
Desenhar, desenhava
com vontade. O que ele não gostava mesmo era de não saber as coisas. E se não
soubesse, zangava-se.
---- Ó, Gilson!
Zangado, era outro menino. Zangado o Gilson, eu em meu
pouco preparo não o aguentava.
---- Ó, Gilson, vá para casa!
E lá vai o Gilson, escorraçado por mim, para casa. Não vai
de boa vontade, vai por eu o ter pego pelo braço e posto para fora. Gilson vai
frustrado, no final do ano ele vai me dizer isso.
Aquele “Ó, Gilson!”, repetido mil vezes por mim, já não
pode ser esquecido. Outros meninos da mesma escola, quando me viam passar,
gritavam-me:
---- Ó, Gilson!
Ao que eu ria. Só podia rir mesmo.
Tempos depois eu mandei uma bola para o Gilson. Ele me viu
na rua, na mesma época, e falou comigo com um sorriso do tamanho do mundo.
Nunca vi maior agradecimento.
Ele estuda na mesma escola, onde trabalho, mas em outro
horário. Não é mais o menino pequeno de antes, mas penso que não deixou de ser
menino. A danação, que é vida pura, não se deixa também sem mais nem menos.
Lembrar do Gilson me faz ter mais amor pela vida, pelas crianças, pela escola.
Por isso agora digo, para que nunca mais esqueça:
---- Ó, Gilson!
27 de fevereiro de 2016
Que texto perfeito!
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