1 de novembro de 2015

Ela não nos criou

De vez em quando, na escola ou noutros espaços sociais, defronto-me com gente de pensamento grande, de mente aberta e de atitude crítica perante situações preocupantes, senão caóticas. Numa dessas, enquanto eu dava aulas numa turma, perguntei a uma aluna o que a preocupava. Sua resposta me permitiu pensar, repensar e pensar ainda um pouco. Ela me disse que já não suportava mais a intensidade com que as pessoas utilizam os aparelhos celulares, alheando-se dos acontecimentos em tempo real e das outras pessoas.
Aquilo me impressionou muito. Me impressionou a ponto de eu questionar se realmente a tecnologia representa mesmo um avanço ou um retrocesso na vida dos homens. Daí veio a percepção de que se a tectonologia induz os indivíduos a esquecerem de si mesmos, a fugir de suas circunstâncias, a desviarem-se das coisas reais e dos outros, ela não pode ser positiva. Não pode porque desumaniza, porque mumifica, por um tempo, a possibilidade de se fazer humano.
Quanto mais os dedos vão deslizando, de clique em clique, mais os sujeitos vão sendo apoderados pela dimensão virtual, oportunizando à tecnologia o domínio sobre o homem. Dominação facilmente percebida no uso descontrolado e faminto de aparelhos e redes.
Não se pode falar em evolução quando a elegante tecnologia substitui as relações autenticamente humanas. Evoluídos parecem os povos que nunca a tiveram. Por isso que, às vezes, quanto mais as pessoas sonham com luz mais permanecem na escuridão.
Quando eu fui criança e adolescente morei no campo, e o que alegrava as noites era a caminhada pelas estradas semi-escuras, rumo a casa dos vizinhos para conversar e tomar café ao redor de fogueiras. Em casa, nada nos tomava o fôlego para conversar, nada nos desviava dos outros. Só que com a chegada da luz elétrica, da televisão, as relações se modificaram. A harmonia virou caos. Já não se faz visitas a ninguém, e tem horas que a conversa vira mudez de múmia.
Não é mal que essa lógica tenha que se inverter. A tecnologia não se criou para nos dominar, mas sim para ser dominada por nós. E a dominamos se não a deixamos nos roubar a humanidade, se não lhe permitimos dirimir o aconchego do outro, se a controlarmos a ponto de usar seu potencial criativo para realizar nossas possibilidades humanas. 

1 de novembro de 2015

4 comentários:

  1. Concordo com vc em partes Manuel, tudo tem seus pontos positivos e negativos, dependendo dab forma que utilizamos. As novas tecnologias podem nos servir de conhecimento literário, preservação das culturas, dentre vários outros exemplos, claro que se fizermos bom uso dela. Adorei o texto. Abraço

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  2. Manoel, como você disse: "A tecnologia não se criou para nos dominar, mas sim para ser dominada por nós". Concordo que o esvaziamento da vida social tem como pano de fundo o uso dessas tecnologias, mas a questão é muito mais profunda que a simples criação e uso delas. É o valor agregado à obtenção e uso dessas mesmas tecnologias que distancia os seres humanos, as redes de entretenimento, o culto à vaidade, etc. Mas também gostei do texto, pois suscita muitas discussões interessantes. Abraços!

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  3. O problema todo não está na tecnologia, mas sim em quem a usa. Já vi pessoas se desligarem do mundo, mas também já vi pessoas se conectando com o mundo inteiro, com culturas diversas, ambas as "desconexões" e conexões foram feitas pelo mesmo meio. A internet pode viciar, alienar e tirar o sentido das coisas essenciais, mas se bem usada, ela pode ser uma ferramenta de mudanças a nível mundial!
    "O problema do homem não está na bomba atômica, senão em seu coração." disse Albert Einstein, da mesma forma funciona com todos os computadores, celulares, roteadores e afins.

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  4. Obrigado por seus comentários. Não deixo de concordar com nenhum deles. Decerto, se me propusesse a avaliar os dois lados da moeda, isto é, os pontos positivos e negativos do uso da tecnologia, teria aprofundado a reflexão. Mas como limitei-me a um lado delas, ficou essa lacuna.

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