7 de maio de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------ Teoria sobre o agrado

       
É encantador ver no ser humano a alegria em agradar aos outros. Agradar com pouca coisa, mas que, pela atitude, fermenta-se. Assim, vejo conterrâneos meus lá dos confins da terra trazerem para um amigo da cidade umas bajes de feijão – raridade nos tempos de crise. Quando não é o feijão verde é o jerimum de casca verde-fartura, é a monstruosa espiga de milho colhida lá do monturo – primeira safra daquilo que melhor pode dar a terra. Tem também, e sempre, algum cozinhado de maxixe. Sempre uma ou outra coisa.
            Ocorre também que, às vezes, o agradado nem é um amigo, mas um mero conhecido que realizou um trato decente, maneira de dizer que com alegria prestou um favor. Nessa situação majestosa, sobressai-se a vontade de contentar.
            Outro dia, por exemplo, ajudei uma amiga a formatar um trabalho de pesquisa e, ao final, como eu dissesse que aquilo não me custava nada, deu-me ela uns torrões branquinhos de goma de mandioca. Tinha amealhado eu a merenda do dia seguinte, despretensiosamente. E ela, a amiga, deixava transparecer o contentamento.
            Mais recentemente, indo para o sítio com minha sogra, passamos na casa de uma senhorinha que, tomando a estrada, nos pediu para ver o que acontecera de errado ao seu telefone. Mexi de um lado e de outro, ouvindo a palestra na sala, porém o aparelho não deu bons sinais. Ainda assim, a boa senhora prometeu-nos um pedaço de queijo.
            Há pouco tempo não se fazia uma visita na casa de outrem sem levar de lá fosse o que fosse: uma manga madura, um punhado de farinha, dois ou três bolinhos de sequilho, meia dúzia de ovos de galinha. Era a maneira utilizada pelas pessoas para agradecer pela consideração.
            Essa delicadeza no querer agradar vem de onde? Da própria natureza? Rousseau diria o quê? Que sim. Eu não sei se natural, contudo sei que nas pequenas cidades é só o que a gente vê. Vê e acha bonito. Acha bonito e vai seguindo a moda. Agradar, nesses lugares, vem do berço, vem do costume, emanando daquilo que o ser humano tem de melhor. E eu fico pensando sobre o custo zero dessas atitudes, da ação de agradar. E se a moda pegasse geral, sonharíamos um destino melhor à humanidade, carente desses menores agrados.

5 de Abril de 2017


20 de abril de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------ O Pé da Serra



Enquanto passamos pelas estradas apertadas do Pé da Serra, em Via Sacra, no dia da Paixão de Cristo, vou relembrando cenas de um passado distante, vivido naquele lugar, que marcaram minha juventude e a de muitas outras pessoas.
A começar pelo açude, antes chamado por todos Açude da Emergência, de propriedade da família de seu Raimundo Maximino. Nas cheias do açude, juntava muita gente para tomar banho, porque quando sangrava era permitido. Desenhava-se uma paisagem encantadora a nossos olhos.
Daquele açude, em menino, carreguei muita água para a luta de casa. Ali também as mulheres da cidade lavaram a roupa da semana. Pouca gente não se servia daquela água. Pouco jovem, ali da redondeza, não “roubou” manga para comer com sal. Porque fartos pés de manga enraizavam-se naquele solo fértil. Naquela água semiamarelada pescávamos peixinhos para comer com farinha. Eram magros os peixes, mas a aventura da pescaria era boa para a meninada.
No Pé da Serra, em direção ao Morro da Cruz, há a estradinha apertada, toda em areia grossa e pedras. Estradinha que nossos pés cruzaram (e ainda cruzam) tantas vezes para subir o morro, ver as cheias dos açudes e ir aos umbuzais. Ao lado da estradinha, solos de pedra guardam a fertilidade. Por ali a água das chuvas corriam tranquilas, lavando nossos pés, desembocando no açude da Emergência.
Naquelas matas adentramos muitas vezes em busca dos umbus maduros, percorrendo as veredas. Também chamavam a atenção os pés de umburana e aroeira, cuja casca é medicinal.
Espécies próprias da caatinga jazem ali, no Pé da Serra. Pedras monstruosas, moldadas pela ação tempo e pela natureza posam naquele lugar. Pedras de uma aspereza peculiar, de uma beleza rara, que nos fascinam. Já foram objeto de mitos, povoando nossa imaginação.
Quando a Igreja Católica, na Campanha da Fraternidade, celebra a consciência ambiental e a valorização da biodiversidade, penso que o Pé da Serra verdadeiramente precisa ser um lugar sagrado, com tudo que há nele. Não só o nosso São Francisco de pedra que jaze no topo do Morro da Cruz, mas também suas árvores, seus animais, suas pedras, suas águas, suas estradas, seus frutos...
Preservar esse lugar é nosso dever como humanos, como cristãos e como cidadãos salitrenses. O Pé da Serra guarda muito de nossa origem. Tudo que nele existe é, além de tudo, uma manifestação da presença de Deus.


14 de Abril de 2017

3 de março de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------- A casa da memória

Ao adentar, como eu não fazia há algum tempo, na casinha verde desbotado onde minha avó materna morou por muitos anos, veio-me à mente algumas lembranças súbitas. Fica na Rua São Pedro, 372, no Centro da cidade. Mas antes preciso esclarecer o estado atual da minha avó: não dormiu seu sonho maior. Vive acolá, numa cadeirinha localizada por sob um pé de pau, numa rua que não é a dela; porém, determinada pela idade e sem muita saúde, foi expulsa pela vida de seu casebre.
Na sala, os dois sofás empoeirados pelo tempo dão a mesma aparência dos velhos tempos. Rodeiam-nos dois quadros antigos muito comtemplados por mim. Outros quadros, mas de um time de futebol, abraçam as pareces, enfileirados. Ali mesmo, ao lado da sala, havia um quartinho onde eu dormi tantas vezes, quando estava com a minha avó. Foi lá, nas madrugadas, que ouvi seus movimentos na cozinha, mulher madrugadora que sempre foi.
Naquela cozinha, apertadinha, a mesa e alguma cadeira são as mesmas. É também o mesmo o fogão vermelho, de trempe velha e fumacenta. Muito vapor saiu dali, e muita comida saborosa, inclusive o frango de sempre que eu tanto adorava. Naquele fogãozinho minha avó fez muito café forte para bebermos antes de subirmos a Serra, de madrugada e a pé, aonde íamos trabalhar e pegar passarinhos nas arapucas. Ali, na cozinha, era o lugar preferido dela para sentar-se, acender o cachimbo e fumar.
Colado á cozinha há o quartinho em que ela dormia. No canto esquerdo jazia uma mala velha, que os museus adorariam acolher, que guardava seus pertences. Uma caminha também cheia de velhice espremia-se lá, no outro canto. Ali cheguei tantas vezes, cedo da noite, chamando a velhinha:
--- Êh, não vai não! Isso é hora de dormir?
A areazinha também me lembra bons momentos. Os vizinhos punham-se sempre ali, enquanto minha avó estivesse. Ali falavam da vida alheia, sempre com muita risada. As pessoas sempre adoraram o humor da minha avó. Brincar e dizer pilhéria ainda é de seu gosto.
Olhando aquela casa tenho a sensação ilusória de que o tempo não passou, de que tudo é como antes. Naquela casa, assim como em outras, minha avó viveu boa parte de sua vida. É a casa da memória. Agora, onde reside, não tem muito o que mostrar. Está esquecida. Está sozinha, seus filhos criaram asas grandes de mais, foram-se pelo mundo. E dói-me a certeza de que um dia vou perder a única avó que tive. Uma grande mulher. Só não preciso esperar que ela se vá para dizer aos outros que a amo, de dizer o quanto ela representa na minha vida.
Certamente, aquela casinha vai se modificar. Mas a história dela passada não vai. Porque a história de nossas vidas pode ser esquecida pelas pessoas, mas nem o gargalo do tempo a destroí.

3/3/2017

31 de janeiro de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------ Aquela que ficou

Enquanto eu passar pela estrada que ruma à Serra, e vir a casinha ao lado da estrada, de cor verde desbotado, lembrar-me-ei daquela que foi grande nesta cidade, que se chamou Adilma Mendes.
Vou me lembrar daquela mulher mãe de sete filhos, aos quais soube dar amor sem limitações. Para eles trabalhou, corajosamente, para sustentar-lhes a preciosa vida. Como mãe, preocupou-se (isto está na essência das mães), mas também fez-se toda em alegria para com seus filhos. Em sua face de verdadeira mãe de família, foi imensamente feliz, por ter se entregado inteiramente e vivido de forma intensa cada momento, porque o amor foi o tempero utilizado por ela para dar sabor à vida.
Vou me lembrar daquela que tinha um café no centro da cidade. Lá atendia sem distinções a todos os transeuntes, de grande e de pouca influência. Cobrou não só o mesmo preço pelo café e pelo almoço, mas soube também rir o mesmo riso a todas as pessoas. Riso que, na verdade, expressão de vitalidade e de doçura. Quem pôde ir tantas vezes ao café de Adilma, decerto foi para provar a comida saborosa, uma vez tendo sido ela cozinheira de mão cheia; mas foi, do mesmo modo, para ouvir suas gaitadas e brincadeiras. Sobremesa para quem carrega a vida como um fardo nas costas.
Vou me lembrar daquela mulher trabalhadora, que nunca sossegou nem se deu ao desprazer de cruzar os braços, pois gostava de ganhar o pão de cada dias com o suor do próprio corpo.
Lembrar-me-ei da devota de Nossa Senhora: “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”. Rezadora incansável do terço. Confiou às Ave-Maria toda a sua trajetória. A Deus entregou sua casa e seus meninos. À igreja serviu frequentemente, sinal de sua obediência.
Não vou me esquecer daquela que ficou. Ficou na memória e no coração de todos aqueles que a conheceram. Porque os verdadeiramente grandes não partem. Depois que dormem, ficam, pois inesquecíveis se tornam. Adilma é a mulher que permanece. Permanece como exemplo de filha e de mãe exemplar; como aquela que foi guerreira e trabalhadora infatigável; permanece como aquela que se doou aos outros, amando sem dó; como aquela que soube partilhar; que soube respeitar os limites do mundo, confiando em Deus; aquela que, de cada momento, bom ou ruim, transformou em situações de alegria.
Quando nos lembrarmos de alguém que riu muito, lembremo-nos de Adilma Mendes. A impressão que tenho – uma quase certeza – é de que ela continua a rir. Ainda nos ensina a rir. E parece-me também que, lá onde está, no reino fantástico, não ri sozinha. Ri cercada de gente, tão alegre quanto sempre fora. Adilma ri enquanto nos espera. Ri porque sabe certa a experiência do reencontro.


29/1/2017

5 de janeiro de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------ Enterraram o cachorro ali



O fato mais triste que me aconteceu esta semana, não tem dois dias, foi um anúncio de morte por uma voz murmurante. Não foi morte de gente, não. Foi morte de cachorro. Um cachorro nunca visto por mim – ainda bem.
Eu ia saindo de moto fazer a compra do pão, mal nascera o dia. E de repente apressou o passo uma velhinha, minha vizinha, que quase não fala nada. Mas veio correndo para me dizer tudo isso:
--- Como é que pode, hem? Vou embora daqui, não aguento... O povo pega e enterra um cachorro logo na frente da casa dos outros – e dizia-me com um pingo de voz.
E chorava. Chorava de verdade. Eu não quis chorar também. Mas fiquei sentido. Fiquei muito sentido. Eu juro! Eu disse, numa meia voz, que concordava com ela, que os vizinhos erraram ao enterrar cachorro ali. Porém, na realidade eu nem sabia o que pensar. Pareço não saber ainda. E nem quero dizer nada. Porque tocou-me mais a dor da senhora, a sua angústia em seu murmurar.
Não que não eu tenha dó do cachorrinho. Não também que não me apavore saber que ao lado da minha casa tem um cão enterrado. É de benzer-se. Deixar o bichinho acabar-se ao sol, na boca dos urubus, é mais humano. Cão enterrado? Não combina.
Eu soube de outros casos assim, em que se enterravam animais brutos, como costumam dizer. Casos piores, em que se mata um cão só por ele ser bom de galinha. Nos sítios, quando um cachorro comete um grande crime, dão-lhe uma surra de arrepiar a gente. Ainda mais um cachorrinho morto, o que não vão fazer? A intenção não tem maldades, entretanto, saber que bem perto enrolaram o cachorro incomoda um pouco.

E a imagem da senhora, atônita por me denunciar aquela malvadeza, desestrutura-me. Piedade natural? Decerto. Eu não sei explicar porque isso tem tanta força sobre mim. Nem preciso. Tem coisas que explicadas perdem o sentido.

5/1/2017

12 de novembro de 2016

A culpa é dos adultos

Hoje veio-me a resposta a uma inquietação antiga: por que as crianças não gostam de ler? Esse problema nasceu de minhas observações, do que meus olhos alucinados veem no correr dos dias: na escola, as crianças não nutrem pelos livros o mesmo amor atribuído às brincadeiras; e nas suas casas, esticam as canelas por sobre o braço dos sofás, quando não se alongam no chão frio, esbugalhando os olhos para a televisão, e sequer abrem um livro para o conhecimento do mundo e das maravilhas que o preenchem.
Nisso é preciso caçar um culpado. Sim, porque todo problema tem uma causa. Não precisei pensar muito para compreender que, como não pode se responsabilizar por si mesma, a criancinha não pode ser a vilã da situação. Não pode porque a idade da razão ainda está no berço. Ela também não sabe o valor, a importância daquilo, antes de lhe dizerem, de lhe mostrem as possibilidades da coisa. Assim, culpados são os adultos, detentores do senso de responsabilidade e da educação dos menores. Os adultos, por menos entendidos que sejam, sabem algo sobre o poder do livro e da leitura sobre as pessoas, na formação de sua personalidade e identidade. Se os pais não souberem, porque seus pais não sabiam nem lhes mostraram, sabem os mestres de seus filhos. É dos adultos, portanto, o papel de incitar nas crianças essa sadia curiosidade.
Os pequenos - e isso é o forte de sua natureza - apresentam curiosidade àquilo que nós, adultos, apresentamos-lhes.
Hoje pela manhã minhas sobrinhas, por exemplo, ao me verem chegando a sua casa carregando uma magra sacola, ficaram me rondando para descobrirem o conteúdo dela. Ao mostrar-lhes, finalmente, aquele conteúdo, logo o pegaram, com o ânimo de quem recebe o doce preferido na boca. E abriram para ver os desenhos, as cores, as letras...
Não é culpada nenhuma criança sem gosto pela leitura; a culpa é daqueles cujo descuido não permitiu-lhes apresentar os livros; de quem não lhes ensinou a gostar, senão a amar os livros. Eis aí uma atividade que se pode se ensinar e se aprender, e bem se aprende quando se bem ensina. Pelo exemplo, pelo hábito, pela disciplina. A culpa é dos adultos, pois são eles quem podem ensinar aos pequenos essa maravilha; e quando forem maiores, por si mesmos, os pequeninos receberão os frutos da semente plantada em solo bom. E agradecerão ao agricultor que as quis cultivar.

12 de Novembro de 2016

29 de junho de 2016

Que sorte a minha


Já não havia em mim vontade de escrever crônicas tem um tempo, por crer não valer a pena, quem sabe. Mas o destino do escritor – ou do semi-escritor, para não ser convencido aos olhos do leitor – é, quando se vê motivado por uma tal questão, enredar uma linhas. Quer-se fugir a própria sorte, sem êxito em consegui-lo.
A propósito, esta cronicazinha trata da sorte. O que é sorte? Se representa aquilo que, de todo modo, está a não depender de mim, sorte é algo que não tenho, que não me acompanha de forma frequente, ou que existe sem nenhuma intensidade em meu viver. Essa semana eu confirmei isso.  No sábado fiz uma prova de vestibular, até com expectativa razoável de que passaria, mesmo sem estudar porque gosto da área para a qual iria concorrer. Ocorreu-me, entretanto, a obrigatoriedade de responder a questões de meu nenhum interesse, de matérias sem sal para mim, exigindo não zerar em nenhuma delas (não digo o nome das matérias para não constranger-me perante os leitores). Numas das matérias, respondi a duas questões pensando as ter acertado e as restantes assinalei uma letra só. Ao aferir depois, no gabarito, percebi logo o desastre cometido: nenhuma das questões tinha como resposta correta a letra assinalada. E para completar, as duas outras também estavam erradas. Muita sorte, não?
A sorte tem muito a ver com o destino, com o acaso. Do ponto de vista Maquiavélico é ela, chamada de fortuna, que rege metade da vida dos homens, não podendo sofrer interferência nenhuma, pois só a outra metade da vida permite a ação humana, entendida como liberdade. Mas há outro pensar, mais atual, e este define sorte como algo que exige a pessoa se preparar para quando a ocasião ideal aparecer ela se dar bem. É muito diferente do ocorrido a mim.
Sorte, mesmo, parece que não a possuo. Do contrário, eu, desde sempre, quis aprender a driblar a falta de sorte, assim como o goleiro, muitas vezes, atira-se à bola ao invés de precisar adivinhar qual o rumo dela, ainda que corra seus riscos. A falta de sorte, porém não me fez padecer; do contrário, deu sentido ao meu estar no mundo, pois tão ruim quanto não ter sorte é tê-la em excesso.

29 de junho de 2016