24 de dezembro de 2018

CRÔNICAS DA CIDADE ----- Quem é que paga?



Quem é que paga?


E
nquanto eu lavava a área de serviço da casa em que moro e mudava as plantas de lugar, ia escutando a conversa que se passava do outro lado da rua. Porque na zona urbana é assim, só a muito custo se escondem até mesmo os segredos mais profundos. E assim ia eu, escutando sem querer, mas com aquele ar de curiosidade.
E a conversa que eu escutava envolvia criança, e por que tinha a ver com criança me chamava ainda mais atenção. Foi quando ouvi um dos vizinhos gritar, sem querer poupar decibéis:
--- O pai dele vai pagar! O pai dele vai pagar!
Aí entendi tudo: um menino tinha feito uma malinação em alguma coisa do homem. Tamanha fúria tinha uma justificativa.
Ante esse ocorrido, me coloquei a pensar, e também me veio esse questionamento: Quando um menino mexe, por ofício da curiosidade ou de danação, em um objeto nosso, a conta dirige-se a seu responsável, que sempre, ou quase sempre, supre o nosso prejuízo; mas quando somos nós que fazemos mal a uma criança, quem reembolsa por ela? Quem paga a conta dela?
Quem é que supre a falta de amor a que tantas crianças, nos lares e fora deles, estão submetidas? Quem é que paga, da mesma forma, a violência física e moral que condena, para sempre, o presente e o futuro dos pequeninos? Quem liquida a falta de conselho, de sensibilidade, atributos de que tantos pais e cuidadores são carentes? Quem é que vai depositar na conta das crianças o dinheiro que paga o alimento que elas não têm, a roupa que não possuem, a casa ainda não alicerçada? Quem é?... Quem arcará com os juros, a tanto por cento, da má condução, do mal exemplo?
Todos os dias observo a vida de muitos pequenos, e quando me pergunto sobre seu futuro, sobre as possibilidades de eles serem homens grandes, é a angústia que me vem ao encontro e esperança que me vem em socorro, porque sei da dureza que podem enfrentar nos seus caminhos estreitos e inseguros. Tenho ciência disso porque também fui criança, e sei que só a muito custo superei certas questões.
Aqueles que ensinam as crianças o egoísmo, a brutalidade, a imoralidade e toda sorte de infortúnios jamais vão ter, lá na frente, condições suficientes de desfazer todo mal que lhes fazem. Porque os bens que as crianças não recebem vão lhes fazer falta a vida toda. A educação, o amor e a dignidade.
Num de seus poemas, a escritora Ruth Rocha atesta: “Toda criança no mundo/Deve ser bem protegida/Contra os rigores do tempo/Contra os rigores da vida”. E pensar que estamos longe disso, muito longe... nos enche de dor.
Sempre que um menino ou uma menina faz algo que os adultos detestam, há sempre uma forma de cobrar o mal feito: com uma surra, com castigos, com palavrões e safanões... Mas aos meninos ninguém sequer pensa em pagar pelo mal diário que lhes cometem. E não vão pagar nunca essa conta tão grande. Como dizia a minha avó, ela vai para o cofre das almas.

24/12/2018



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