27 de dezembro de 2014

As crenças nossas de cada dia

As crenças populares, que a filosofia e a ciência chamam de senso comum, estão constantemente presentes em nossa vida, no nosso dia a dia, e conseguem até deixar a nossa experiência mais significativa. A filosofia não despreza o saber da crença - nem o pode fazer -, mas a ele atribui significação, uma significação existencial.
Fora a filosofia, há a nossa vida, e ela sim é quem dá ao senso comum um sentido maior. Eu, por exemplo, cresci ouvindo minha mãe dizer que comer baião quente e tomar banho causava morte, o que se devia evitar; brigava também quando via a mim e a meus irmãos colocar as mãos na cabeça, pois segundo ela aquilo era agouro aos pais; e não se podia, ainda, almoçar ou jantar de cócoras, porque aquilo sinalizava o atraso. Todas essas crenças a minha mãe aprendeu com a sua mãe, que aprendeu com a mãe dela, que aprendera com outras mães.
Outras crenças nortearam o meu viver. Minha avó, ao almoço e janta, mistura a comida com farinha de mandioca, pois aprendeu que comer sem é comer escoteiro, e isso para ela significa algo maligno. Quando uma criança pequenina soluça muita gente diz: "Deus te dê água de batismo"; se essa mesma criança sentir dor no umbigo, mastigue-se cebola e ponha-se para umedecer. Não se varra a casa à noite, que azara. E não se guarde vassoura de trás da porta... Varrer os pés de outra pessoa, segundo aprendi, não traz casamento.
Tenho um tio que, quando lá em casa fazia-se a fogueira à noite, passava para conversar, e nas conversas rememorava o passado inteiro. Ensinou-nos uma experiência de mil anos: numa bacia com água, põe-se duas brasas, que representam um homem e uma mulher casados; a brasa que não afundar morrerá por último. As pessoas que assistiam ficavam mortos de medo daquela experiência.
Interessante é que esses saberes, essas crenças vão passando de geração a geração. Mesmo diante de tanta tecnologia e de desenvolvimento científico, mesmo diante de grandes novidades e do descartável, esses saberes não morrem; ao contrário, são revividos cada vez mais pelas pessoas. Há até filósofos que valorizam o senso comum, pelo seu caráter prático.
Particularmente, penso que tais crenças são imprescindíveis por darem à nossa vida aquele caráter misterioso que nos mobiliza. É o desafio que nos move: o desafio da vida, da morte, do medo. E as crenças são o modo que encontramos, muitas vezes, para conviver com esses desafios. As crenças só não podem ser o único modo de ver a vida, mas, fora isso, precisam enfeitar nosso viver e pôr de molho por um tempo a razão.

27 de dezembro de 2014.

16 de dezembro de 2014

A injustiça bem perto de nós

Eu não ia mais escrever crônica nenhuma este ano, mas me lembrei de um fato ocorrido recentemente que me incomodou, fazendo-me pensar que a injustiça está diariamente bem perto de nós, quando menos imaginamos, a vitimar alguém.
O fato foi este: um homem, meu vizinho, trabalhava para essa empresa que constrói asfalto e que está em nossa cidade, contratada pelo estado para realizar a obra de asfaltamento que liga o município ao Pernambuco; trabalhava, mas não trabalha mais, porque um dia o gerente disse: "Trabalharemos agora de domingo a domingo, sem dia de descanso". E o pobre homem, dentre tantos outros empregados, foi o único a dizer: "De modo nenhum, dia de domingo não trabalho nem pra minha mãe".Ocorreu que, realmente, ele não foi mesmo trabalhar no domingo,nem em dia nenhum: demitiram-no. 
Algum dogmático e alienado dirá que foi bem feito, pois quem é empregado deve saber obedecer ao patrão. Mas não é bem assim, porque se um homem diz que não quer trabalhar a semana inteira é porque, no mínimo, quer descansar com a família, ter um pouco de lazer e paz.
Ao ficar ciente desse fato, forma inumana de ditadura, cogitei que, como essa, há muitas outras formas de injustiça. Há, por exemplo, injustiça quando uma autoridade educacional ameaça: "Professora, se não me incluir o seu projeto não sai do papel"; há injustiça e opressão na voz do jornalista que diz: "Aqui, nessa rádio, só fala quem eu quiser"; há, entre outros modos, injustiça na voz satânica da presidente de sessão eleitoral  que usa de palavra violenta só porque alguém revida e quer esclarecimentos; injustos é o político que ordena aos funcionários contratados que votem em seu candidato, sob pena de perderem seu emprego.
A injustiça está tão perto de nós que é preciso um cuidado martelado para, de um lado, não sermos vítimas dela e, de outro lado, para não sermos nós os que faltam com a justiça. E que fique um último recado: ao diabo tudo e todos que tentam, para servirem unicamente a seus interesses, refrear a liberdade humana e ferir a dignidade das pessoas, porque, certamente, os injustos estão na condição de menoridade. A injustiça é uma patife. E os injustos, serão o quê?

14 de dezembro de 2014

7 de dezembro de 2014

Comigo ninguém pôde um dia

Quando pequeno, derrubei o guarda-louças de minha mãe, quebrando tudo o que havia nele e comprado a duras penas: uns copos de porcelana, uns pratos de vidro usados meramente quando alguém que não era de casa aparecia para os aperitivos, e objetos mais que costumam, por alguma razão, envaidecer as donas de casa.
Nestes dias, meu menino, de dois anos de idade, derrubou a estante da sala, já amolecida, de parafusos desencorajados, e, incontinenti, lembrei-me desse fato da minha infância.
Menino pequeno, não teve culpa de nada, movido pela curiosidade, pela criatividade de se esconder dentro do objeto, de explorar aquele ambiente... Do mesmo modo, também eu era pequeno e devia ter as outras qualidades, mas fui severamente castigado por meus pais, que quase enlouqueceram com o ocorrido. Levei umas cipoadas e mil e uma broncas deles, como a tradição mandava que se fizesse aos filhos marotos, donos da desordem e da inquietude.
Despertado por tudo isso e pelo que meu filho fez recentemente, penso que para ser efetivamente criança é necessário aprontar uma malinação grande. Grande, não, grandiosa! Ora! A mansidão não combina com ser criança. A passividade não há de contentar aos pequeninos. À criança é necessária nem que seja só uma oportunidade de realizar uma danação escandalosa, um feito extraordinário, uma obra miraculosa. 
Há uma expressão repetidamente utilizada pelos pais: "Com esse ninguém pode". É pronunciada em sentido negativo, porém devia ser uma espécie de elogio, porque um menino ou menina danados, com os quais "ninguém pode", estão inventando e reinventando-se o tempo todo em suas fases de aventura. Sorte da criança a quem se diz: "Com esse ninguém pode". Hoje, me dizem costumeiramente: "Manoel, que tranquilidade, hem"! Nem imaginam que um dia eu derrubei o guarda-louças da minha mãe, que levei surra de vassoura de garrancho por conta dos meus feitos. Nem sabem que já fui um menino com o qual, pelo menos uma vez na vida, ninguém podia. 
O meu desejo é que todas as crianças do mundo, mas sem correr risco de vida, sejam aquelas com quem ninguém pode, pois que pintando o sete no mundo é que podem, efetivamente, viver a plenitude da vida.

7 de dezembro de 2014

1 de novembro de 2014

A idade de ouro da vida

Quando vejo essas crianças e esses jovens, eu sinto alegria imensa; quando os vejo, em seu estado de iluminismo, eu sinto uma inveja tremenda, inveja porque podem estar vivendo essa fase de suas vidas, povoada de uma alegria quase natural, onde tudo demonstra sentido de se viver.Eu fui menino e adolescente e nunca vou me esquecer dessa dádiva, porque a vida não me permitirá. “Quando crianças, não há preocupação que nos assalte”, costumamos dizer a todo momento. Essa meia verdade é uma ideia comum. Mas não é a falta de preocupação que me faz, no pensamento, querer reviver os tempos que tive. Na verdade, eu era uma criança preocupada, como ainda hoje, porque a minha infância não foi coroada. Só que, à parte as dificuldades, fora um tempo muito bom.Primeiro porque todo mundo estava em casa. Depois, porque se via a natureza da porta de casa. Em seguida, porque a simplicidade nos fazia imenso bem. Por último, viver parecia ser uma experiência profunda.Ao afirmar “todo mundo estava em casa” quero expressar que a gente não tinha que sofrer pela partilha da família, pela sua fragmentação, que sempre nos causa dor. Além disso, parece que a gente se queria muito mais, num amor quase que sagrado. Havia tremenda graça em se tomar um simples café arrodeados da fogueira em noite de escuridão. A comida, de tardinha, ganhava mais gosto quando a mesa punha-se repleta de gente, umas pessoas vivendo em prol das outras.Quando criança habitei a zona rural, e por isso fui privilegiado, pois o contato com a natureza me fez imenso bem. Os meses de chuva pareciam inexplicáveis e neles vivíamos melhor. O verde transformava a paisagem, assim, ríamos com o tempo. A minha avó e o meu pai tinham uma choupana de taipa, onde nos abrigávamos. Trabalhávamos, colhíamos as melancias doces, os jerimuns, armávamos as arapucas... Todo mundo punha-se a ralhar na roça (eu nunca tive grande coragem física, mas estava lá, alegremente), e nos confortávamos na união.Rousseau, um suíço do século do iluminismo, já dissera que em estado de natureza é a simplicidade que domina, é a bondade original, livre de todos os males, que permeia a vida do homem. É bonito esse romantismo pronunciado pelo mestre Rousseau. Na infância e juventude normalmente ninguém pensa em ser mais, em ter mais. Pensamos, sim, em crescer, pela curiosidade que a vida adulta nos proporciona, em sair de casa, conhecer outros lugares e novas gentes, assanhados por essa curiosidade.Não penso que após deixarmos de ser crianças e jovens a vida perda a sua profundidade. Não, pelo contrário. O que penso é que há, naquele momento da vida, mais gosto, mais sentido em se viver. A vida adulta é resultado da própria natureza humana, afinal de contas ninguém pode decidir se vai crescer ou não. Entretanto, ao crescer perdemos alguma coisa: a família, os amigos, a simplicidade terapêutica... Não há como voltar atrás, mas há, e isso é muito, como guardar na memória esses grandes instantes de alegria e de bem viver. Hei de lembrar, dia após dia, dos passeios que fazia com a minha avó na estrada desabitada, para “roubar” manga; lembrarei dos banhos de chuva, das rezas da minha mãe... Melhor do que voltar atrás é possibilitar que meu filho, hoje uma criança, também viva momentos assim de felicidade e lembre-se deles com alegria. Antigamente, a cigarra cantava e eu fazia versos inspirado por esse canto. Eu quero que, sempre, a minha infância, como as cigarras e os grilos da noite, cante para mim, para que eu possa escrever os versos que farão a minha vida  expressiva, sempre desejada. Será o meu passado se reafirmando no meu futuro. 25 de outubro de 2014

1 de outubro de 2014

Rita doida, Rita alegre

Eu sempre quis, me lembro agora, escrever algumas palavras sobre Rita doida. Doida como ela há tantas, mas nenhuma igual. Mas não é sua loucura particular que me interessa; é que, desde menino, conheço Rita doida, o que me ajudou a ter um respeito imenso por ela.
Rita doida nora sozinha numa casa de paredes mal pitadas e pequena, na Rua São Pedro. Parece muito fácil dizer: "Aquela é a Rita doida, abestalhada, que nem juízo tem". Isso porque também é muito fácil ignorar que a Rita doida perdeu seus dois meninos, teve uma quase-morte, um trauma existencial. O resultado foi aquele enlouquecer que a fez perder a razão. E que pai ou mãe não seria uma Rita doida sofrendo uma fatalidade assim? Aos poucos, Rita doida foi também perdendo a mãe e o pai, ficando desamparada, e a loucura foi como que se generalizando.
Alta noite, ela conversa só, em alta voz, como se acompanhada de mais gente. Ora chora, ora diz palavrões, briga, dá estridentes gargalhadas, mostra-se valente. Quando se torna diminuta a loucura e ela quer ter um pouco de consciência, conta histórias reais,vividas por si,onde ela figura como heroína. Sempre lembrando dos seus. Noutros momentos, já sumida a sanidade, imita fantasmas, faz rir aos outros, adultos e a meninada local.
Rita doida não faz mal nenhum. Há, na rua, gente insensata que amedronta as crianças: "Corre, que a Rita doida te pega". Rita até gosta das crianças, pois já a vi dando moedinhas a elas. Quando uma criança tem gazes, Rita vai na sua casa, dá um trago no cigarro e joga a fumaça no umbigo para ver se a doença some. Rita quer bem aos pequenos da rua. Mais doida que a Rita é quem a explora, mandando-a colocar água na cabeça em troca de restos de couro de galinha ou de uma cuia de farinha. Muito mais louco que ela é quem detesta criança na rua, é quem a faz ir ao cemitério, de madrugada,prometendo-lhe dinheiro. Todos os desumanos são doidos, muito mais doidos que a Rita doida. Muita gente que julga a Rita tem uma certa loucura e ainda não sabe.
É necessário que eu diga em que consiste a peculiar loucura da minha amiga: é que ela, tendo todas as razões possíveis para se entregar a depressão e padecer, é uma doida alegre. Alegre no sentido de que nada faz se lastimando, e eté (senão nos instantes de profunda inconsciência) vive normalmente, como uma pessoa dotada de todas as capacidades mentais. Rita alegre, e não doida. Rita alegre que sabe alegrar, que faz rir, que não joga pedra, nem corre atrás de ninguém. Rita é da rua, e uma loucura alegre, como a dela, pode servir de remédio. Por isso mesmo é que nunca tive pena ou dó da Rita, pois nela sempre vi pairada uma luz, uma alegria rara. É que eu fui me formando para compreender a grandeza dos que socialmente se apequenam.

01 de outubro de 2014

9 de setembro de 2014

Idosos: baús da humanidade

Parece que quando, aos domingos, vou à missa me deixo inebriar pelo cheirinho de perfume de alfazema que domina o grande salão da igreja. Quero dizer o quê? Que me deixo fascinar por aquelas pessoas já idosas, de grande idade, de face serena que põem-se sentadas nos bancos emadeirados, fazendo-se em rezas e orações.
            Me encanta, nos senhores e senhoras, menos a idade expressiva do que o fato de saber que, postos naquele nível da vida, viveram grandes experiências e as mais diversas. Aí, indago a mim mesmo: que viveram esses idosos? São homens e mulheres que provaram do mais salgado da vida, do mais doce até, do mais azedo, do mais insosso por ventura. Não há nesse mundo do que não tenham provado. Tristeza e alegria povoaram suas vidas, não há que duvidar. Gente que teve filho, que lutou para os ver progredir; gente que, sem querer, perdeu a prole, quase morreu de dor, sentiu a face em puro espanto; gente que, também, teve sua fase de iluminismo, que cresceu na vida, vivendo de tudo e de tudo tirando algum proveito e ensinamento.
            Esses velhinhos e velhinhas são o baú da humanidade. Um baú nunca é depósito de coisa sem serventia. Ao contrário, do baú há de se tirar coisa bem proveitosa. Como baús da humanidade, os idosos são exemplos, são fonte de sabedoria, de inspiração para viver, para saber fazer-se no mundo. Os idosos são a memória do mundo, por isso, fonte de saber. São a beleza do mundo, por isso, fonte de poesia, de encanto.
            Assim, penso que a nossa cultura necessita ser uma cultuta que não só respeite, mas acima de tudo ame os idosos. Eles que trouxeram a vida até aqui, guerrearam para vencer. Grandeza mesmo reside em seus rostos magestosos. E, como afirmara a filósofa Marilena Chauí, desvalorizar os idosos é negar a memória, negar o passado, descartar a vida.


3 de agosto de 2014

Uma água, moço?

Recentemente fui a uma cidade do Ceará, maior que a minha, fazer balisa de carro. Quando me desocupei, sentei-me à calçada, observando os transeuntes e outras pessoas que foram ali com o mesmo propósito que eu. De quando em vez passava um menino de uns dez anos com uma caixa de isopor, vendendo água mineral e de coco.
-- Uma água, moço? - oferecia ele.
Nesse instante o meu eu metafísico: comecei a pensar naquele menino, querendo desvendá-lo.
Pus-me a perguntar como seria a vida daquele menino, a sua família, se estudava ou não, se tinha amigos, um lar ou se morava, simplesmente, na rua. Indaguei, ainda, sobre a razão de ele estar ali, se vendia a água para alguém em troca de miseráveis moedinhas ou se para ajudar a família. Refleti sobre as razões e desrazões que o faziam viver daquele modo.
Eu criava hipóteses acerca do menino: poderia ser que, estando ali, fosse um menino muito bom para a mãe e os irmãos, ou que, ao contrário, o estivesse explorando-o, situação que condena muita criança brasileira. Na verdade, esse menino jazia em lugar inapropriado, em situação inapropriada. Final de semana, devia estar brincando, lendo, descansando... vivendo.
Me perguntava, por fim, a pergunta cuja resposta nós, homens preocupados com o destino do mundo, nunca obtivemos nem nos satisfez: por que a vida chega a ser tão injusta? Este questionamento certamente é capaz de gerar outra metafísica interminável.
Não me conformo com a injustiça, pior quando ela atinge a vida de uma criança, porque, no fundo, crianças são seres de inocência comprovada, que não sabem defender a si mesmas, pondo-se, às vezes, alheias à sorte. Crianças de rua cuja experiência nós, de olhos meio indiferentes, não gostaríamos de ter vivido. E se cada um pensasse, nem que por um breve instante, nessas criaturinhas, talvez uma saída e um rumo novo, agora estrelado, ganhariam os menores.
Não poderei esquecer a voz quase de súplica do menino que passava diversas vezes no mesmo trajeto, como se, a cada vez, não tivesse passado por ninguém:
-- Uma água, moço?

03 de agosto de 2014

11 de julho de 2014

Um ser mulher

Se a mulher, durante longo tempo, não teve grande destaque nas sociedades, isto é, se socialmente não foi valorizada como é de seu merecimento, não foi por falta de reconhecimento de seu valor e de suas possibilidades. É o que eu noto no dia a dia, e dou o melhor exemplo, que um professor um dia me fez enxergar.
O exemplo é esse: se uma pessoa qualquer for a casa de seus pais e, chegando lá, estiverem todos da família, menos a mãe, a dona da casa e do lar, essa pessoa, certamente, e sem dúvida, sentirá a casa um tanto vazia, e se exasperará enquanto ela não aparecer. Não, ninguém conseguirá diminuir a importância do pai, dos irmãos e de qualquer outro parente, porém, a figura feminina da mãe, em ausência, chega a ser insuportável. Um pai, um irmão ou um tio, em falta, também chega a ser desconfortável, mas, ainda assim, é incomparável à falta da mãe.
Ainda os marmanjos, quando se veem em casa sozinhos, percebem logo o labirinto em que se metem, pois a mera saída de uma mulher de casa gera o desconforto de que falei anteriormente. E olhe-se que esse desconforto não se remete ao fato de a casa ficar uma bagunça. Se uma dona de casa não estiver no lar, é como se nada ali existisse.
Dizer o quanto uma mulher é imprescindível no mundo usando a figura da mãe é, realmente, referir-se a suas qualidades: doçura, companheirismo, amabilidade, iniciativa, vontade de sempre agradar etc., atributos dos quais o mundo precisa tanto e que os homens não os tem tão bem. 
Vivemos num tempo em que a mulher precisa de reconhecimento. Aquelas mulheres que não saem do pé do fogão, as que lavam e passam roupa, as que vivem seus dias escuros, sem grandes oportunidades, as que são desprezadas, todas essas mulheres precisam saber que são grandes somente pelo fato de existirem em nossas vidas. Porque, no fundo, nós homens sentimos isso e, mesmo que silenciosamente, reconhecemos no interior de nossas almas
E a mulher nunca poderá estar na mesma posição que o homem: deverá estar além, muito além, porque o homem jamais terá a alma que a mulher tem, alma que os poetas já estudaram e nem descobriram toda, alma sempre a florescer, a encantar.



11 de julho de 2014.

1 de junho de 2014

Salitre, sempre Salitre

Uma vez, e não faz muito tempo, ouvi alguém que não é salitrense dizer, não sei com que intenção: "Salitre nunca deixa de ser Salitre", como a querer expressar que somos um povo atrasado e que esse atraso é permanente, que parece sem fim. Foi justamente aí que me espantei (o espanto é sempre o começo de uma ideia), decidindo que escreveria uma crônica sobre o tema.
De fato, concordo com aquela criatura: Salitre é sempre Salitre. Mas, diferente dela, tenho duas opiniões, isto é, creio que Salitre nunca deixa de ser Salitre, e isso é um pouco ruim, só que também é muito bom. Direi por quê.
É ruim porque ainda continuamos, como quase todo o resto do Brasil, um povo sem muita consciência política, que não aprendeu ainda, ou que talvez não teve a oportunidade de lutar mais seriamente por uma vida melhor. Salitre é sempre Salitre, pois precisamos, urgentemente, dar mais valor ao que temos, sob pena de não perder nossa própria origem.
Havia um pintor em Salitre cuja obra é de excelente qualidade, mas não teve reconhecimento nem em vida nem em morte. Esse pintor chamava-se Mosinho, mas como não participava de vaquejadas fora esquecido.
E haverão outros pontos fracos para dizer que Salitre é sempre Salitre.
Por outro lado, Salitre é sempre Salitre, e isso é maravilhoso. Ora mais, nós somos o povo mais humilde e generoso que há no Brasil, não tenho dúvida. Quando digo povo humilde, quero dizer um povo que sabe se relacionar, que sabe unir-se em prol de uma questão, em prol de alguém. Recentemente, por exemplo, um menino precisava realizar uma cirurgia sem ter condições, mas uma multidão de gente boa, que é a nossa gente, incluindo autoridades e não autoridades, reuniu forças para ajudá-lo. Poucos dias atrás uma menina que veio do Espírito Santo disse ser muito bom estudar em Salitre, pois as escolas daqui são muito próximas dos alunos,diferentemente das de onde ela residia.
A nossa população é mesmo assim, constituída de homens e mulheres que, mesmo não abastados, não negam um prato de feijão, como se diz por aqui, que não deixam de oferecer a quem quer que seja, uma ajuda, uma palavra, um gesto de irmandade. Parece que temos um mesmo sangue. Parece que, por natureza, somos todos irmãos.
Por fim ficará esse recado: dirão ainda, por muito tempo, que estamos, como sempre atrasados, mesmo que mintam. Precisamos melhorar, e muito, contudo, o atraso já não é nossa característica. Dirão também que Salitre é sempre Salitre, Salitre do povo generoso, humilde, batalhador, fraterno como nenhum outro povo, nenhuma outra gente. Salitre, sempre Salitre.

01 de junho de 2014

18 de maio de 2014

O bêbado é humano



Sempre pensei que não se deve desprezar os bêbados, porque talvez eles tenham pouca culpa em relação à condição em que vivem. Eles são resultados menos de um desleixo por si mesmos, um abandono de si, do que de um sistema desigual, de uma sociedade perversa e crua.
De maneira geral, os bêbados são bem interessantes. Não fazem muitos dias, por exemplo, eu sentara no ponto de ônibus quando veio um bêbado me perguntar se eu tinha dez centavos. Meio envergonhado, eu disse que não. A resposta dele foi a seguinte.
-- Não presta para estar vivo.
Deu-me vontade de rir. Mas não o fiz, pois poderia ele se zangar e querer meter-se  a valente, o que é próprio dos bêbados.
Nessa cidade, me lembro que um homem  muito beberrão, punha-se na rua a pedir dinheiro aos transeuntes, mas sempre recebia algo, porque circulava o mito de que toda praga que ele jogava, quando não davam-lhe o que pedia, pegava. Esse homem costumava dormir nas calçadas, de grande que era o porre nos finais de semana. E por causa da cachaça tornou-se conhecido de todos.
Entretanto, mesmo engraçados, pouco se lhes dá de valor. Se não forem nosso parentes preconceituosamente queremos, sem demora, fugir deles a todo custo.
O que é necessário é compreender que o beberrão de rua, às vezes, é também um homem trabalhador, que dá o máximo de si para sustentar a família. Um bêbado de esquina muitas vezes não deixa de ser um homem decente quando não está naquela situação. Alguém que bebe, homem ou mulher, não deixa de ser, ao mesmo tempo, um ser humano que quer fugir dos problemas e dos males da vida, das decepções mundanas, das frustrações familiares ou das determinações históricas, como a pobreza, a fome, a miséria. Por isso, que não se culpe os bêbados nem se os despreze... Afinal de contas, o desprezo às pessoas nunca deixa de ser o maior dos porres.


10 de abril de 2014

4 de abril de 2014

Crônica a uma grande mulher

Quando alguém surge para lhe ver ela está lá, sentada num tamborete dos antigos, tendo em uma das mãos um pedaço de pau que tem serventia de um bastão. Quem é ela? É Dona Elvira, aquela que diz sempre, quando a gente põe um pé do lado de fora, querendo sumir-se estrada afora:
-- Mas tá cedo, tola!
Essa mesma imagem, já teatral mas verdadeira, se repetiu na última vez em que fui vê-la, no Pé da Serra, onde mora numa casinha pequena.
Dona Elvira nasceu no Brejo Santo, cidade em que morava com a família. Um dia, tendo casado, passou a andar por outros rumos. Outro dia, só que ruim, o esposo morreu, deixando-a sozinha no mundo, já que a pobrezinha não conseguiu ver mais nenhum dos seus familiares.
-- Pense como ele era bom forneiro! - ela faz questão de afirmar em conversa com os visitantes.
Dessa vez, estando em seu lar, disse o que outras vezes me dissera: como conheceu o marido, homem bom, bom aos extremos. Mas se repete toda a história não o faz por caduquice, e sim porque sente que, na vida, sofreu imensa perda. Imaginemos o quanto já não chorou essa mulher que é sem mãe, sem pai, sem esposo, sem filhos, sem ninguém que seja seu.
Entretanto, mesmo desaparentada têm muitos amigos que lhe gostem, pessoas de família com quem viveu seus anos de solidão e que, por irem ter com ela, recebem mil agradecimentos pela visita.
Essa velhinha de noventa anos que pouca gente conhece, é a maior mulher dessa cidade, desapegada a qualquer bem, que vive no centro da cidade quase que com sacrifício, pois teve que abandonar a sua casinha do campo de viver tranquilo e alegre.
O que resta de sua morada é um pote grande, de barro, de água doce, e uma velha e encarvoada fornalha fumacenta, que faz a comida mais saborosa desse pedaço de chão.
Ninguém dessa cidade, nem os homens mais ilustres, há de compreender todo o valor dessa mulher, agora velha e magra, trepidante e sem muita saúde. Essa mulher que antigamente fazia novenas para São José, seu santo adorado, como muitos que ela tem pendurados na parede, quando a sua casa enchia-se de gente para rezar e saborear os deliciosos biscoitos de goma. Mulher que, mesmo sem um broto seu, foi mãe de tantos filhos, já que aqueles que a estimam o fazem como filhos seus. Essa mulher – essa grande mulher - , se tem algum contentamento na vida é quando vê um certo ser adentrar porta adentro para ouvir suas memórias repetidas, tomando o café de gosto inconfundível. Se lhe resta alegria é no instante em que pode, após a conversa com o visitante, dizer, seja ele quem for:
-- Mas tá cedo, tola!
Essa é Dona Elvira. Dona Elvira, a grande mulher salitrense.


01 de abril de 2014.

13 de março de 2014

Gente que volta à escola

Das cenas escolares, dos episódios diários que ocorrem na escola, o que vi até ontem de mais interessante foi isso: no lado externo da escola havia uma mulher com uma bebezinha nos braços, e essa menininha há pouco tempo nascida chorava aos berros. Então eu podia pensar: certamente é a mãe, e maltrata a criança. Não pensei isso porque não deu tempo, pois quase na mesma hora o portão da escola foi aberto e por ele passou uma aluna, que foi chamada para fora para dar leite à pequenina. Aquele choro era fome.
Mas com os meus botões pensei noutras coisas. Pensei que uma pessoa, mesmo tendo filhos, ainda tem gosto em estudar. Pensei também que há gente, uma infinidade dela, que abandona a escola, por um pequeno, médio ou longo tempo, depois se dá conta de que não fez a coisa certa, então quer voltar, consertar o erro, vencer na vida após aquela paralisação. Pensei, por último, que isso é muito profundo, que é, na verdade, muito bonito.
Na mesma escola existem pessoas que têm dezenas e dezenas de anos, cumprindo uma jornada escolar na Educação de Jovens e Adultos. Há senhoras que já apanharam muitíssimas bages de feijão nos baixios do sertão, mulheres donas de casa, exaustas de raspar mandioca nas casas de farinha salitrenses, meninos jovens trabalhadores e guerreiros, mães de muitos filhos e de tantas preocupações e responsabilidades.
Essas pessoas entendem, agora, o quanto a escola é interessante, e que ela pode lhes fornecer algo a mais que aquilo que têm. E, em busca do que a educação formal pode lhes fornecer, esses adultos experientes deixam, por um pouco de tempo, os filhos ou a televisão, para irem aprender mais alguma coisa. Porém, algo é certo: a escola se torna enriquecida com a presença  desses alunos que, ainda que atrasadamente, não desistiram ainda de correr atrás de seus sonhos, levando também saberes e experiências para dividir com seus pares. Aliás, são brasileiros, talvez nunca o façam.

13 de março de 2014.

28 de fevereiro de 2014

Quem silencia uma sala de aula caduca


Antigamente, metiam a palmatória na mão da gente e, de tanto doer, fazíamos de tudo para não receber por outras vezes o mesmo castigo. Assim, o professor era uma ameaça a custo de muita obediência. Hoje, entretanto, os papéis se inverteram, e quem ameaça não é mais o teacher, mas o alunado; isso porque, para sorte de todo mundo, o mestre já não pode bater nos meninos, muitos até merecedores de umas palmadas, mas também porque essa juventude que nos alegra e nos condena não é a mesma de há tantos anos atrás. Tem outro perfil, outro modo de ser, de agir  e pensar.
O que nós, pobres professores, podemos fazer, no máximo, é enfeiar a cara, deixá-la feia, pronunciar um sermão, dizer a juventude frenética que é preciso prestar atenção às aulas, e para expressar também o nosso desgosto diante de posturas desagradáveis. Há professores que ainda vão mais longe, chamam o discente de macaco, de palhaço ou burro, para ganhar ódio e dizer para quanto prestam. Entretanto, o ódio sentido pelos estudantes, diante disso, é enorme, de modo que na primeira oportunidade que têm, os alunos tratam logo de os desqualificar.
Há, não nego, alunos que são inocentes, o que se percebe quando ouvem, calados, a qualquer difamação sofrida por algum professor dono da razão, assim como existem mestres inocentes, que permitem inocentemente que alunos levantes a voz para ele. Só que inocentes os há em menor quantidade, o que exige de nós professores uma preparação para, do mesmo modo, preparar tais jovens. E como prepará-los?
Usar da violência quando dela se sofre; repetir palavras feias quando se as ouve; bradar, se desequilibrar diante di desequilíbrio... Nenhuma dessas ações é proveitosa. Vale mais dizer aos alunos para que viemos e procurar saber deles as motivações pessoas que os fazem vir a sala de aula. Compreendo que de todos os caminhos o melhor é educar com humildade e com transparência, tornando a escola não um lugar de obediência, de silẽncio e de revolta, mas de diálogo, de alegria e compromisso com a sabedoria.
Quem quiser ensinar de outro modo, que ensine. Quem quiser transmitir só por transmitir, que o faça. Quem desejar uma sala de aula silenciosa... Porém, querer que, hoje, os jovens venham à escola para serem dominados e agredidos, além de significar cometer os mesmos erros da educação do passado, é caducar muito.

28 de fevereiro de 2014

8 de fevereiro de 2014

Muito caro


 Hoje pela manhã, após dar um passeio pela rua de muito movimento, e depois de resolver também algumas obrigações, passei por um menino que vendia tomates debaixo de uma árvore e, de súbito, pensei em tomar uma atitude: "já que eu tenho que comprar tomates, melhor comprar àquele rapazote", e fui procurar saber quanto custava. 

-- Quatro reais - me disse ele.
-- Eita, mas está é caro, hem!
Só depois disso é que eu me surpreendi com a minha própria descoberta: caro não é o produto vendido por aquela criança, caro é ela estar ali, impropriamente, trabalhando quando não devia. Cara é a quentura que a maltrata, talvez a fome que lhe desvitaliiza. Caros, dentre outras coisas, são os olhos indiferentes que passam por ali, vendo aquele episódio como algo qualquer e comum.
A poucos passos, pensei ainda em quantas crianças nessa cidade não pagam essa mesma carestia, em quantas não pagam além dela. Em meu pensamento correu a ideia de que não devo culpar seus pais e sua família, que, assim como aquele menino, pagam caro para viver, para sobreviver a qualquer custo. Isso porque em criança também trabalhei muito, mais do que podia, mas jamais pude culpar os meus pais por tal fato, pois se para mim a dificuldade se expressava, para eles tomava maior vulto.
Não quero dizer  que as crianças podem continuar trabalhando porque aqueles que as fizeram são sofredores. Jamais. O certo é não trabalharem. O que digo, repetidamente, é que tudo isso é muito caro e rouba, injustamente, o prazer e a felicidade infantis. Trabalho infantil assalta a alegria infantil que, a meu ver, dinheiro nenhum paga.

Salitre - CE, 08 de fevereiro de 2013.