24 de maio de 2019

CRÔNICAS DA CIDADE - Maria da terra do boi

Foto: Verônica Aguiar



Meu nome é Maria Grosso. Mas Grosso é só nome, porque meu xerém é fino.
Quase sempre vivi por aqui, aonde o boi chegou. Meu tio foi quem deu nome a este lugar, mia fia! Mas vambora, que minha memória é só fiapo.
Quando vim para cá, em meados de não sei quando, aqui era um pedaço de chão muito bom, porém difícil, mia fia! De onde eu vim? Sei de nada não, eu não estou boa não... Maria, tu sabe? A tramontana me carregou para cá, é isso que importa.
Tá chovendo, mia fia. Ô chuva boa!
Pois é. Nessa terra do boi vinha gente daqui e dali, dessas quebradas de mundo de meu Deus. Vinha dançar a lata, no meio do terreiro... a gente botava um fogo, pra fazer luz na noite, e aí se agarrava homem com mulher. Aí a gente cantava aquela canção... Maria, como era que cantava?
Olha os relâmpagos! Virgem Maria!
Chega o povo por aqui, na minha casa, e quer saber os causos, as histórias. E eu, com a mente já feito uma cumbuca, vou narrando as coisas de que me lembro. De como um boi, tangido por seu dono, saiu do lado do Taque Novo, e veio parar aqui para beber a água da lagoa e ouvir os cantos da mãe d’água. Perguntam sobre as lendas, sobre o reisado, mas não me perguntam
sobre o que é ser negro, ou meus ouvidos estão mudos?
Meu nome é Maria Grosso, Maria da terra do boi. Negra e idosa. Negra. O que é ser negra? O que é ter essa pela tão exagerada de melanina? Negra, negra até morrer! Porque essas coisas que a natureza dá não se acabam, não fogem pelos caminhos como fugiu o boi de seu dono.
Maria, se acabou o relâmpago?
O que é ser negro num país como o nosso, ainda cheio de senzalas em que as correntes são o preconceito e o racismo? O que é ser negro numa cidade pequena, como esta, onde esses males ferozes também fazem morada? Males terríveis, que não morrem com o chá de mastruz que Maria arrancou aqui em casa.
Querem que eu diga sou negra? Eu sou negra. Negra. Mas pensam que é fácil dizer tal coisa? É não. É estranho que uma comunidade não queira se reconhecer como negra, como quilombola? Venha ser negro e me diga! Venha ter a pele que tenho. Pele que Deus me deu.
Meu nome é Maria Grosso, filha do povo que lutou para sobreviver – e ainda luta, e que foi e é importante na construção do país. Povo que foi roubado de seu chão e que aprendeu a ser brasileiro a duras penas.
Meu nome é Maria Grosso, e preciso aprender a dizer sem tristeza, em coro com o meu povo, “eu sou negro”. Me ensinem! Me ensinem valorizando minha gente, a sua cultura, os seus ritos, as suas histórias, desvendando o seu imaginário... Me ensinem! Olhando para a nossa condição atual, enxergando também as nossas necessidades, não esquecendo de ver a nossa pobreza material, que contrasta com a nossa riqueza cultural. Porque quando dissermos, juntos, “eu sou negro!”, com alegria e sem vergonha, todos nós vamos dançar juntos o reisado e vamos olhar para o presente com mais esperança, sabendo que no futuro os nossos descendentes viverão melhor do que nós. Nós sonhamos um dia não ter que baixar a cabeça por causa da cor da nossa pele. Isso não depende só de nós.
Meu nome é Maria Grosso. Negra. Idosa. Mulher. Maria da terra do boi.
Muito prazer!

13 de maio de 2019

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