Foto: Verônica Aguiar |
Meu
nome é Maria Grosso. Mas Grosso é só nome, porque meu xerém é fino.
Quase sempre vivi por aqui, aonde o boi
chegou. Meu tio foi quem deu nome a este lugar, mia fia! Mas vambora, que minha
memória é só fiapo.
Quando vim para cá, em meados de não sei
quando, aqui era um pedaço de chão muito bom, porém difícil, mia fia! De onde
eu vim? Sei de nada não, eu não estou boa não... Maria, tu sabe? A tramontana
me carregou para cá, é isso que importa.
Tá chovendo, mia fia. Ô chuva boa!
Pois é. Nessa terra do boi vinha gente
daqui e dali, dessas quebradas de mundo de meu Deus. Vinha dançar a lata, no
meio do terreiro... a gente botava um fogo, pra fazer luz na noite, e aí se
agarrava homem com mulher. Aí a gente cantava aquela canção... Maria, como era
que cantava?
Olha os relâmpagos! Virgem Maria!
Chega o povo por aqui, na minha casa, e
quer saber os causos, as histórias. E eu, com a mente já feito uma cumbuca, vou
narrando as coisas de que me lembro. De como um boi, tangido por seu dono, saiu
do lado do Taque Novo, e veio parar aqui para beber a água da lagoa e ouvir os
cantos da mãe d’água. Perguntam sobre as lendas, sobre o reisado, mas não me
perguntam
sobre
o que é ser negro, ou meus ouvidos estão mudos?
Meu nome é Maria Grosso, Maria da terra
do boi. Negra e idosa. Negra. O que é ser negra? O que é ter essa pela tão
exagerada de melanina? Negra, negra até morrer! Porque essas coisas que a
natureza dá não se acabam, não fogem pelos caminhos como fugiu o boi de seu
dono.
Maria, se acabou o relâmpago?
O que é ser negro num país como o nosso,
ainda cheio de senzalas em que as correntes são o preconceito e o racismo? O
que é ser negro numa cidade pequena, como esta, onde esses males ferozes também
fazem morada? Males terríveis, que não morrem com o chá de mastruz que Maria
arrancou aqui em casa.
Querem que eu diga sou negra? Eu sou
negra. Negra. Mas pensam que é fácil dizer tal coisa? É não. É estranho que uma
comunidade não queira se reconhecer como negra, como quilombola? Venha ser
negro e me diga! Venha ter a pele que tenho. Pele que Deus me deu.
Meu nome é Maria Grosso, filha do povo
que lutou para sobreviver – e ainda luta, e que foi e é importante na
construção do país. Povo que foi roubado de seu chão e que aprendeu a ser
brasileiro a duras penas.
Meu nome é Maria Grosso, e preciso
aprender a dizer sem tristeza, em coro com o meu povo, “eu sou negro”. Me
ensinem! Me ensinem valorizando minha gente, a sua cultura, os seus ritos, as
suas histórias, desvendando o seu imaginário... Me ensinem! Olhando para a
nossa condição atual, enxergando também as nossas necessidades, não esquecendo
de ver a nossa pobreza material, que contrasta com a nossa riqueza cultural.
Porque quando dissermos, juntos, “eu sou negro!”, com alegria e sem vergonha,
todos nós vamos dançar juntos o reisado e vamos olhar para o presente com mais esperança,
sabendo que no futuro os nossos descendentes viverão melhor do que nós. Nós
sonhamos um dia não ter que baixar a cabeça por causa da cor da nossa pele.
Isso não depende só de nós.
Meu nome é Maria Grosso. Negra. Idosa.
Mulher. Maria da terra do boi.
Muito prazer!
13 de maio de 2019
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