9 de setembro de 2014

Idosos: baús da humanidade

Parece que quando, aos domingos, vou à missa me deixo inebriar pelo cheirinho de perfume de alfazema que domina o grande salão da igreja. Quero dizer o quê? Que me deixo fascinar por aquelas pessoas já idosas, de grande idade, de face serena que põem-se sentadas nos bancos emadeirados, fazendo-se em rezas e orações.
            Me encanta, nos senhores e senhoras, menos a idade expressiva do que o fato de saber que, postos naquele nível da vida, viveram grandes experiências e as mais diversas. Aí, indago a mim mesmo: que viveram esses idosos? São homens e mulheres que provaram do mais salgado da vida, do mais doce até, do mais azedo, do mais insosso por ventura. Não há nesse mundo do que não tenham provado. Tristeza e alegria povoaram suas vidas, não há que duvidar. Gente que teve filho, que lutou para os ver progredir; gente que, sem querer, perdeu a prole, quase morreu de dor, sentiu a face em puro espanto; gente que, também, teve sua fase de iluminismo, que cresceu na vida, vivendo de tudo e de tudo tirando algum proveito e ensinamento.
            Esses velhinhos e velhinhas são o baú da humanidade. Um baú nunca é depósito de coisa sem serventia. Ao contrário, do baú há de se tirar coisa bem proveitosa. Como baús da humanidade, os idosos são exemplos, são fonte de sabedoria, de inspiração para viver, para saber fazer-se no mundo. Os idosos são a memória do mundo, por isso, fonte de saber. São a beleza do mundo, por isso, fonte de poesia, de encanto.
            Assim, penso que a nossa cultura necessita ser uma cultuta que não só respeite, mas acima de tudo ame os idosos. Eles que trouxeram a vida até aqui, guerrearam para vencer. Grandeza mesmo reside em seus rostos magestosos. E, como afirmara a filósofa Marilena Chauí, desvalorizar os idosos é negar a memória, negar o passado, descartar a vida.


3 de agosto de 2014

Uma água, moço?

Recentemente fui a uma cidade do Ceará, maior que a minha, fazer balisa de carro. Quando me desocupei, sentei-me à calçada, observando os transeuntes e outras pessoas que foram ali com o mesmo propósito que eu. De quando em vez passava um menino de uns dez anos com uma caixa de isopor, vendendo água mineral e de coco.
-- Uma água, moço? - oferecia ele.
Nesse instante o meu eu metafísico: comecei a pensar naquele menino, querendo desvendá-lo.
Pus-me a perguntar como seria a vida daquele menino, a sua família, se estudava ou não, se tinha amigos, um lar ou se morava, simplesmente, na rua. Indaguei, ainda, sobre a razão de ele estar ali, se vendia a água para alguém em troca de miseráveis moedinhas ou se para ajudar a família. Refleti sobre as razões e desrazões que o faziam viver daquele modo.
Eu criava hipóteses acerca do menino: poderia ser que, estando ali, fosse um menino muito bom para a mãe e os irmãos, ou que, ao contrário, o estivesse explorando-o, situação que condena muita criança brasileira. Na verdade, esse menino jazia em lugar inapropriado, em situação inapropriada. Final de semana, devia estar brincando, lendo, descansando... vivendo.
Me perguntava, por fim, a pergunta cuja resposta nós, homens preocupados com o destino do mundo, nunca obtivemos nem nos satisfez: por que a vida chega a ser tão injusta? Este questionamento certamente é capaz de gerar outra metafísica interminável.
Não me conformo com a injustiça, pior quando ela atinge a vida de uma criança, porque, no fundo, crianças são seres de inocência comprovada, que não sabem defender a si mesmas, pondo-se, às vezes, alheias à sorte. Crianças de rua cuja experiência nós, de olhos meio indiferentes, não gostaríamos de ter vivido. E se cada um pensasse, nem que por um breve instante, nessas criaturinhas, talvez uma saída e um rumo novo, agora estrelado, ganhariam os menores.
Não poderei esquecer a voz quase de súplica do menino que passava diversas vezes no mesmo trajeto, como se, a cada vez, não tivesse passado por ninguém:
-- Uma água, moço?

03 de agosto de 2014

11 de julho de 2014

Um ser mulher

Se a mulher, durante longo tempo, não teve grande destaque nas sociedades, isto é, se socialmente não foi valorizada como é de seu merecimento, não foi por falta de reconhecimento de seu valor e de suas possibilidades. É o que eu noto no dia a dia, e dou o melhor exemplo, que um professor um dia me fez enxergar.
O exemplo é esse: se uma pessoa qualquer for a casa de seus pais e, chegando lá, estiverem todos da família, menos a mãe, a dona da casa e do lar, essa pessoa, certamente, e sem dúvida, sentirá a casa um tanto vazia, e se exasperará enquanto ela não aparecer. Não, ninguém conseguirá diminuir a importância do pai, dos irmãos e de qualquer outro parente, porém, a figura feminina da mãe, em ausência, chega a ser insuportável. Um pai, um irmão ou um tio, em falta, também chega a ser desconfortável, mas, ainda assim, é incomparável à falta da mãe.
Ainda os marmanjos, quando se veem em casa sozinhos, percebem logo o labirinto em que se metem, pois a mera saída de uma mulher de casa gera o desconforto de que falei anteriormente. E olhe-se que esse desconforto não se remete ao fato de a casa ficar uma bagunça. Se uma dona de casa não estiver no lar, é como se nada ali existisse.
Dizer o quanto uma mulher é imprescindível no mundo usando a figura da mãe é, realmente, referir-se a suas qualidades: doçura, companheirismo, amabilidade, iniciativa, vontade de sempre agradar etc., atributos dos quais o mundo precisa tanto e que os homens não os tem tão bem. 
Vivemos num tempo em que a mulher precisa de reconhecimento. Aquelas mulheres que não saem do pé do fogão, as que lavam e passam roupa, as que vivem seus dias escuros, sem grandes oportunidades, as que são desprezadas, todas essas mulheres precisam saber que são grandes somente pelo fato de existirem em nossas vidas. Porque, no fundo, nós homens sentimos isso e, mesmo que silenciosamente, reconhecemos no interior de nossas almas
E a mulher nunca poderá estar na mesma posição que o homem: deverá estar além, muito além, porque o homem jamais terá a alma que a mulher tem, alma que os poetas já estudaram e nem descobriram toda, alma sempre a florescer, a encantar.



11 de julho de 2014.

1 de junho de 2014

Salitre, sempre Salitre

Uma vez, e não faz muito tempo, ouvi alguém que não é salitrense dizer, não sei com que intenção: "Salitre nunca deixa de ser Salitre", como a querer expressar que somos um povo atrasado e que esse atraso é permanente, que parece sem fim. Foi justamente aí que me espantei (o espanto é sempre o começo de uma ideia), decidindo que escreveria uma crônica sobre o tema.
De fato, concordo com aquela criatura: Salitre é sempre Salitre. Mas, diferente dela, tenho duas opiniões, isto é, creio que Salitre nunca deixa de ser Salitre, e isso é um pouco ruim, só que também é muito bom. Direi por quê.
É ruim porque ainda continuamos, como quase todo o resto do Brasil, um povo sem muita consciência política, que não aprendeu ainda, ou que talvez não teve a oportunidade de lutar mais seriamente por uma vida melhor. Salitre é sempre Salitre, pois precisamos, urgentemente, dar mais valor ao que temos, sob pena de não perder nossa própria origem.
Havia um pintor em Salitre cuja obra é de excelente qualidade, mas não teve reconhecimento nem em vida nem em morte. Esse pintor chamava-se Mosinho, mas como não participava de vaquejadas fora esquecido.
E haverão outros pontos fracos para dizer que Salitre é sempre Salitre.
Por outro lado, Salitre é sempre Salitre, e isso é maravilhoso. Ora mais, nós somos o povo mais humilde e generoso que há no Brasil, não tenho dúvida. Quando digo povo humilde, quero dizer um povo que sabe se relacionar, que sabe unir-se em prol de uma questão, em prol de alguém. Recentemente, por exemplo, um menino precisava realizar uma cirurgia sem ter condições, mas uma multidão de gente boa, que é a nossa gente, incluindo autoridades e não autoridades, reuniu forças para ajudá-lo. Poucos dias atrás uma menina que veio do Espírito Santo disse ser muito bom estudar em Salitre, pois as escolas daqui são muito próximas dos alunos,diferentemente das de onde ela residia.
A nossa população é mesmo assim, constituída de homens e mulheres que, mesmo não abastados, não negam um prato de feijão, como se diz por aqui, que não deixam de oferecer a quem quer que seja, uma ajuda, uma palavra, um gesto de irmandade. Parece que temos um mesmo sangue. Parece que, por natureza, somos todos irmãos.
Por fim ficará esse recado: dirão ainda, por muito tempo, que estamos, como sempre atrasados, mesmo que mintam. Precisamos melhorar, e muito, contudo, o atraso já não é nossa característica. Dirão também que Salitre é sempre Salitre, Salitre do povo generoso, humilde, batalhador, fraterno como nenhum outro povo, nenhuma outra gente. Salitre, sempre Salitre.

01 de junho de 2014

18 de maio de 2014

O bêbado é humano



Sempre pensei que não se deve desprezar os bêbados, porque talvez eles tenham pouca culpa em relação à condição em que vivem. Eles são resultados menos de um desleixo por si mesmos, um abandono de si, do que de um sistema desigual, de uma sociedade perversa e crua.
De maneira geral, os bêbados são bem interessantes. Não fazem muitos dias, por exemplo, eu sentara no ponto de ônibus quando veio um bêbado me perguntar se eu tinha dez centavos. Meio envergonhado, eu disse que não. A resposta dele foi a seguinte.
-- Não presta para estar vivo.
Deu-me vontade de rir. Mas não o fiz, pois poderia ele se zangar e querer meter-se  a valente, o que é próprio dos bêbados.
Nessa cidade, me lembro que um homem  muito beberrão, punha-se na rua a pedir dinheiro aos transeuntes, mas sempre recebia algo, porque circulava o mito de que toda praga que ele jogava, quando não davam-lhe o que pedia, pegava. Esse homem costumava dormir nas calçadas, de grande que era o porre nos finais de semana. E por causa da cachaça tornou-se conhecido de todos.
Entretanto, mesmo engraçados, pouco se lhes dá de valor. Se não forem nosso parentes preconceituosamente queremos, sem demora, fugir deles a todo custo.
O que é necessário é compreender que o beberrão de rua, às vezes, é também um homem trabalhador, que dá o máximo de si para sustentar a família. Um bêbado de esquina muitas vezes não deixa de ser um homem decente quando não está naquela situação. Alguém que bebe, homem ou mulher, não deixa de ser, ao mesmo tempo, um ser humano que quer fugir dos problemas e dos males da vida, das decepções mundanas, das frustrações familiares ou das determinações históricas, como a pobreza, a fome, a miséria. Por isso, que não se culpe os bêbados nem se os despreze... Afinal de contas, o desprezo às pessoas nunca deixa de ser o maior dos porres.


10 de abril de 2014

4 de abril de 2014

Crônica a uma grande mulher

Quando alguém surge para lhe ver ela está lá, sentada num tamborete dos antigos, tendo em uma das mãos um pedaço de pau que tem serventia de um bastão. Quem é ela? É Dona Elvira, aquela que diz sempre, quando a gente põe um pé do lado de fora, querendo sumir-se estrada afora:
-- Mas tá cedo, tola!
Essa mesma imagem, já teatral mas verdadeira, se repetiu na última vez em que fui vê-la, no Pé da Serra, onde mora numa casinha pequena.
Dona Elvira nasceu no Brejo Santo, cidade em que morava com a família. Um dia, tendo casado, passou a andar por outros rumos. Outro dia, só que ruim, o esposo morreu, deixando-a sozinha no mundo, já que a pobrezinha não conseguiu ver mais nenhum dos seus familiares.
-- Pense como ele era bom forneiro! - ela faz questão de afirmar em conversa com os visitantes.
Dessa vez, estando em seu lar, disse o que outras vezes me dissera: como conheceu o marido, homem bom, bom aos extremos. Mas se repete toda a história não o faz por caduquice, e sim porque sente que, na vida, sofreu imensa perda. Imaginemos o quanto já não chorou essa mulher que é sem mãe, sem pai, sem esposo, sem filhos, sem ninguém que seja seu.
Entretanto, mesmo desaparentada têm muitos amigos que lhe gostem, pessoas de família com quem viveu seus anos de solidão e que, por irem ter com ela, recebem mil agradecimentos pela visita.
Essa velhinha de noventa anos que pouca gente conhece, é a maior mulher dessa cidade, desapegada a qualquer bem, que vive no centro da cidade quase que com sacrifício, pois teve que abandonar a sua casinha do campo de viver tranquilo e alegre.
O que resta de sua morada é um pote grande, de barro, de água doce, e uma velha e encarvoada fornalha fumacenta, que faz a comida mais saborosa desse pedaço de chão.
Ninguém dessa cidade, nem os homens mais ilustres, há de compreender todo o valor dessa mulher, agora velha e magra, trepidante e sem muita saúde. Essa mulher que antigamente fazia novenas para São José, seu santo adorado, como muitos que ela tem pendurados na parede, quando a sua casa enchia-se de gente para rezar e saborear os deliciosos biscoitos de goma. Mulher que, mesmo sem um broto seu, foi mãe de tantos filhos, já que aqueles que a estimam o fazem como filhos seus. Essa mulher – essa grande mulher - , se tem algum contentamento na vida é quando vê um certo ser adentrar porta adentro para ouvir suas memórias repetidas, tomando o café de gosto inconfundível. Se lhe resta alegria é no instante em que pode, após a conversa com o visitante, dizer, seja ele quem for:
-- Mas tá cedo, tola!
Essa é Dona Elvira. Dona Elvira, a grande mulher salitrense.


01 de abril de 2014.

13 de março de 2014

Gente que volta à escola

Das cenas escolares, dos episódios diários que ocorrem na escola, o que vi até ontem de mais interessante foi isso: no lado externo da escola havia uma mulher com uma bebezinha nos braços, e essa menininha há pouco tempo nascida chorava aos berros. Então eu podia pensar: certamente é a mãe, e maltrata a criança. Não pensei isso porque não deu tempo, pois quase na mesma hora o portão da escola foi aberto e por ele passou uma aluna, que foi chamada para fora para dar leite à pequenina. Aquele choro era fome.
Mas com os meus botões pensei noutras coisas. Pensei que uma pessoa, mesmo tendo filhos, ainda tem gosto em estudar. Pensei também que há gente, uma infinidade dela, que abandona a escola, por um pequeno, médio ou longo tempo, depois se dá conta de que não fez a coisa certa, então quer voltar, consertar o erro, vencer na vida após aquela paralisação. Pensei, por último, que isso é muito profundo, que é, na verdade, muito bonito.
Na mesma escola existem pessoas que têm dezenas e dezenas de anos, cumprindo uma jornada escolar na Educação de Jovens e Adultos. Há senhoras que já apanharam muitíssimas bages de feijão nos baixios do sertão, mulheres donas de casa, exaustas de raspar mandioca nas casas de farinha salitrenses, meninos jovens trabalhadores e guerreiros, mães de muitos filhos e de tantas preocupações e responsabilidades.
Essas pessoas entendem, agora, o quanto a escola é interessante, e que ela pode lhes fornecer algo a mais que aquilo que têm. E, em busca do que a educação formal pode lhes fornecer, esses adultos experientes deixam, por um pouco de tempo, os filhos ou a televisão, para irem aprender mais alguma coisa. Porém, algo é certo: a escola se torna enriquecida com a presença  desses alunos que, ainda que atrasadamente, não desistiram ainda de correr atrás de seus sonhos, levando também saberes e experiências para dividir com seus pares. Aliás, são brasileiros, talvez nunca o façam.

13 de março de 2014.