16 de dezembro de 2014

A injustiça bem perto de nós

Eu não ia mais escrever crônica nenhuma este ano, mas me lembrei de um fato ocorrido recentemente que me incomodou, fazendo-me pensar que a injustiça está diariamente bem perto de nós, quando menos imaginamos, a vitimar alguém.
O fato foi este: um homem, meu vizinho, trabalhava para essa empresa que constrói asfalto e que está em nossa cidade, contratada pelo estado para realizar a obra de asfaltamento que liga o município ao Pernambuco; trabalhava, mas não trabalha mais, porque um dia o gerente disse: "Trabalharemos agora de domingo a domingo, sem dia de descanso". E o pobre homem, dentre tantos outros empregados, foi o único a dizer: "De modo nenhum, dia de domingo não trabalho nem pra minha mãe".Ocorreu que, realmente, ele não foi mesmo trabalhar no domingo,nem em dia nenhum: demitiram-no. 
Algum dogmático e alienado dirá que foi bem feito, pois quem é empregado deve saber obedecer ao patrão. Mas não é bem assim, porque se um homem diz que não quer trabalhar a semana inteira é porque, no mínimo, quer descansar com a família, ter um pouco de lazer e paz.
Ao ficar ciente desse fato, forma inumana de ditadura, cogitei que, como essa, há muitas outras formas de injustiça. Há, por exemplo, injustiça quando uma autoridade educacional ameaça: "Professora, se não me incluir o seu projeto não sai do papel"; há injustiça e opressão na voz do jornalista que diz: "Aqui, nessa rádio, só fala quem eu quiser"; há, entre outros modos, injustiça na voz satânica da presidente de sessão eleitoral  que usa de palavra violenta só porque alguém revida e quer esclarecimentos; injustos é o político que ordena aos funcionários contratados que votem em seu candidato, sob pena de perderem seu emprego.
A injustiça está tão perto de nós que é preciso um cuidado martelado para, de um lado, não sermos vítimas dela e, de outro lado, para não sermos nós os que faltam com a justiça. E que fique um último recado: ao diabo tudo e todos que tentam, para servirem unicamente a seus interesses, refrear a liberdade humana e ferir a dignidade das pessoas, porque, certamente, os injustos estão na condição de menoridade. A injustiça é uma patife. E os injustos, serão o quê?

14 de dezembro de 2014

7 de dezembro de 2014

Comigo ninguém pôde um dia

Quando pequeno, derrubei o guarda-louças de minha mãe, quebrando tudo o que havia nele e comprado a duras penas: uns copos de porcelana, uns pratos de vidro usados meramente quando alguém que não era de casa aparecia para os aperitivos, e objetos mais que costumam, por alguma razão, envaidecer as donas de casa.
Nestes dias, meu menino, de dois anos de idade, derrubou a estante da sala, já amolecida, de parafusos desencorajados, e, incontinenti, lembrei-me desse fato da minha infância.
Menino pequeno, não teve culpa de nada, movido pela curiosidade, pela criatividade de se esconder dentro do objeto, de explorar aquele ambiente... Do mesmo modo, também eu era pequeno e devia ter as outras qualidades, mas fui severamente castigado por meus pais, que quase enlouqueceram com o ocorrido. Levei umas cipoadas e mil e uma broncas deles, como a tradição mandava que se fizesse aos filhos marotos, donos da desordem e da inquietude.
Despertado por tudo isso e pelo que meu filho fez recentemente, penso que para ser efetivamente criança é necessário aprontar uma malinação grande. Grande, não, grandiosa! Ora! A mansidão não combina com ser criança. A passividade não há de contentar aos pequeninos. À criança é necessária nem que seja só uma oportunidade de realizar uma danação escandalosa, um feito extraordinário, uma obra miraculosa. 
Há uma expressão repetidamente utilizada pelos pais: "Com esse ninguém pode". É pronunciada em sentido negativo, porém devia ser uma espécie de elogio, porque um menino ou menina danados, com os quais "ninguém pode", estão inventando e reinventando-se o tempo todo em suas fases de aventura. Sorte da criança a quem se diz: "Com esse ninguém pode". Hoje, me dizem costumeiramente: "Manoel, que tranquilidade, hem"! Nem imaginam que um dia eu derrubei o guarda-louças da minha mãe, que levei surra de vassoura de garrancho por conta dos meus feitos. Nem sabem que já fui um menino com o qual, pelo menos uma vez na vida, ninguém podia. 
O meu desejo é que todas as crianças do mundo, mas sem correr risco de vida, sejam aquelas com quem ninguém pode, pois que pintando o sete no mundo é que podem, efetivamente, viver a plenitude da vida.

7 de dezembro de 2014

1 de novembro de 2014

A idade de ouro da vida

Quando vejo essas crianças e esses jovens, eu sinto alegria imensa; quando os vejo, em seu estado de iluminismo, eu sinto uma inveja tremenda, inveja porque podem estar vivendo essa fase de suas vidas, povoada de uma alegria quase natural, onde tudo demonstra sentido de se viver.Eu fui menino e adolescente e nunca vou me esquecer dessa dádiva, porque a vida não me permitirá. “Quando crianças, não há preocupação que nos assalte”, costumamos dizer a todo momento. Essa meia verdade é uma ideia comum. Mas não é a falta de preocupação que me faz, no pensamento, querer reviver os tempos que tive. Na verdade, eu era uma criança preocupada, como ainda hoje, porque a minha infância não foi coroada. Só que, à parte as dificuldades, fora um tempo muito bom.Primeiro porque todo mundo estava em casa. Depois, porque se via a natureza da porta de casa. Em seguida, porque a simplicidade nos fazia imenso bem. Por último, viver parecia ser uma experiência profunda.Ao afirmar “todo mundo estava em casa” quero expressar que a gente não tinha que sofrer pela partilha da família, pela sua fragmentação, que sempre nos causa dor. Além disso, parece que a gente se queria muito mais, num amor quase que sagrado. Havia tremenda graça em se tomar um simples café arrodeados da fogueira em noite de escuridão. A comida, de tardinha, ganhava mais gosto quando a mesa punha-se repleta de gente, umas pessoas vivendo em prol das outras.Quando criança habitei a zona rural, e por isso fui privilegiado, pois o contato com a natureza me fez imenso bem. Os meses de chuva pareciam inexplicáveis e neles vivíamos melhor. O verde transformava a paisagem, assim, ríamos com o tempo. A minha avó e o meu pai tinham uma choupana de taipa, onde nos abrigávamos. Trabalhávamos, colhíamos as melancias doces, os jerimuns, armávamos as arapucas... Todo mundo punha-se a ralhar na roça (eu nunca tive grande coragem física, mas estava lá, alegremente), e nos confortávamos na união.Rousseau, um suíço do século do iluminismo, já dissera que em estado de natureza é a simplicidade que domina, é a bondade original, livre de todos os males, que permeia a vida do homem. É bonito esse romantismo pronunciado pelo mestre Rousseau. Na infância e juventude normalmente ninguém pensa em ser mais, em ter mais. Pensamos, sim, em crescer, pela curiosidade que a vida adulta nos proporciona, em sair de casa, conhecer outros lugares e novas gentes, assanhados por essa curiosidade.Não penso que após deixarmos de ser crianças e jovens a vida perda a sua profundidade. Não, pelo contrário. O que penso é que há, naquele momento da vida, mais gosto, mais sentido em se viver. A vida adulta é resultado da própria natureza humana, afinal de contas ninguém pode decidir se vai crescer ou não. Entretanto, ao crescer perdemos alguma coisa: a família, os amigos, a simplicidade terapêutica... Não há como voltar atrás, mas há, e isso é muito, como guardar na memória esses grandes instantes de alegria e de bem viver. Hei de lembrar, dia após dia, dos passeios que fazia com a minha avó na estrada desabitada, para “roubar” manga; lembrarei dos banhos de chuva, das rezas da minha mãe... Melhor do que voltar atrás é possibilitar que meu filho, hoje uma criança, também viva momentos assim de felicidade e lembre-se deles com alegria. Antigamente, a cigarra cantava e eu fazia versos inspirado por esse canto. Eu quero que, sempre, a minha infância, como as cigarras e os grilos da noite, cante para mim, para que eu possa escrever os versos que farão a minha vida  expressiva, sempre desejada. Será o meu passado se reafirmando no meu futuro. 25 de outubro de 2014

1 de outubro de 2014

Rita doida, Rita alegre

Eu sempre quis, me lembro agora, escrever algumas palavras sobre Rita doida. Doida como ela há tantas, mas nenhuma igual. Mas não é sua loucura particular que me interessa; é que, desde menino, conheço Rita doida, o que me ajudou a ter um respeito imenso por ela.
Rita doida nora sozinha numa casa de paredes mal pitadas e pequena, na Rua São Pedro. Parece muito fácil dizer: "Aquela é a Rita doida, abestalhada, que nem juízo tem". Isso porque também é muito fácil ignorar que a Rita doida perdeu seus dois meninos, teve uma quase-morte, um trauma existencial. O resultado foi aquele enlouquecer que a fez perder a razão. E que pai ou mãe não seria uma Rita doida sofrendo uma fatalidade assim? Aos poucos, Rita doida foi também perdendo a mãe e o pai, ficando desamparada, e a loucura foi como que se generalizando.
Alta noite, ela conversa só, em alta voz, como se acompanhada de mais gente. Ora chora, ora diz palavrões, briga, dá estridentes gargalhadas, mostra-se valente. Quando se torna diminuta a loucura e ela quer ter um pouco de consciência, conta histórias reais,vividas por si,onde ela figura como heroína. Sempre lembrando dos seus. Noutros momentos, já sumida a sanidade, imita fantasmas, faz rir aos outros, adultos e a meninada local.
Rita doida não faz mal nenhum. Há, na rua, gente insensata que amedronta as crianças: "Corre, que a Rita doida te pega". Rita até gosta das crianças, pois já a vi dando moedinhas a elas. Quando uma criança tem gazes, Rita vai na sua casa, dá um trago no cigarro e joga a fumaça no umbigo para ver se a doença some. Rita quer bem aos pequenos da rua. Mais doida que a Rita é quem a explora, mandando-a colocar água na cabeça em troca de restos de couro de galinha ou de uma cuia de farinha. Muito mais louco que ela é quem detesta criança na rua, é quem a faz ir ao cemitério, de madrugada,prometendo-lhe dinheiro. Todos os desumanos são doidos, muito mais doidos que a Rita doida. Muita gente que julga a Rita tem uma certa loucura e ainda não sabe.
É necessário que eu diga em que consiste a peculiar loucura da minha amiga: é que ela, tendo todas as razões possíveis para se entregar a depressão e padecer, é uma doida alegre. Alegre no sentido de que nada faz se lastimando, e eté (senão nos instantes de profunda inconsciência) vive normalmente, como uma pessoa dotada de todas as capacidades mentais. Rita alegre, e não doida. Rita alegre que sabe alegrar, que faz rir, que não joga pedra, nem corre atrás de ninguém. Rita é da rua, e uma loucura alegre, como a dela, pode servir de remédio. Por isso mesmo é que nunca tive pena ou dó da Rita, pois nela sempre vi pairada uma luz, uma alegria rara. É que eu fui me formando para compreender a grandeza dos que socialmente se apequenam.

01 de outubro de 2014

9 de setembro de 2014

Idosos: baús da humanidade

Parece que quando, aos domingos, vou à missa me deixo inebriar pelo cheirinho de perfume de alfazema que domina o grande salão da igreja. Quero dizer o quê? Que me deixo fascinar por aquelas pessoas já idosas, de grande idade, de face serena que põem-se sentadas nos bancos emadeirados, fazendo-se em rezas e orações.
            Me encanta, nos senhores e senhoras, menos a idade expressiva do que o fato de saber que, postos naquele nível da vida, viveram grandes experiências e as mais diversas. Aí, indago a mim mesmo: que viveram esses idosos? São homens e mulheres que provaram do mais salgado da vida, do mais doce até, do mais azedo, do mais insosso por ventura. Não há nesse mundo do que não tenham provado. Tristeza e alegria povoaram suas vidas, não há que duvidar. Gente que teve filho, que lutou para os ver progredir; gente que, sem querer, perdeu a prole, quase morreu de dor, sentiu a face em puro espanto; gente que, também, teve sua fase de iluminismo, que cresceu na vida, vivendo de tudo e de tudo tirando algum proveito e ensinamento.
            Esses velhinhos e velhinhas são o baú da humanidade. Um baú nunca é depósito de coisa sem serventia. Ao contrário, do baú há de se tirar coisa bem proveitosa. Como baús da humanidade, os idosos são exemplos, são fonte de sabedoria, de inspiração para viver, para saber fazer-se no mundo. Os idosos são a memória do mundo, por isso, fonte de saber. São a beleza do mundo, por isso, fonte de poesia, de encanto.
            Assim, penso que a nossa cultura necessita ser uma cultuta que não só respeite, mas acima de tudo ame os idosos. Eles que trouxeram a vida até aqui, guerrearam para vencer. Grandeza mesmo reside em seus rostos magestosos. E, como afirmara a filósofa Marilena Chauí, desvalorizar os idosos é negar a memória, negar o passado, descartar a vida.


3 de agosto de 2014

Uma água, moço?

Recentemente fui a uma cidade do Ceará, maior que a minha, fazer balisa de carro. Quando me desocupei, sentei-me à calçada, observando os transeuntes e outras pessoas que foram ali com o mesmo propósito que eu. De quando em vez passava um menino de uns dez anos com uma caixa de isopor, vendendo água mineral e de coco.
-- Uma água, moço? - oferecia ele.
Nesse instante o meu eu metafísico: comecei a pensar naquele menino, querendo desvendá-lo.
Pus-me a perguntar como seria a vida daquele menino, a sua família, se estudava ou não, se tinha amigos, um lar ou se morava, simplesmente, na rua. Indaguei, ainda, sobre a razão de ele estar ali, se vendia a água para alguém em troca de miseráveis moedinhas ou se para ajudar a família. Refleti sobre as razões e desrazões que o faziam viver daquele modo.
Eu criava hipóteses acerca do menino: poderia ser que, estando ali, fosse um menino muito bom para a mãe e os irmãos, ou que, ao contrário, o estivesse explorando-o, situação que condena muita criança brasileira. Na verdade, esse menino jazia em lugar inapropriado, em situação inapropriada. Final de semana, devia estar brincando, lendo, descansando... vivendo.
Me perguntava, por fim, a pergunta cuja resposta nós, homens preocupados com o destino do mundo, nunca obtivemos nem nos satisfez: por que a vida chega a ser tão injusta? Este questionamento certamente é capaz de gerar outra metafísica interminável.
Não me conformo com a injustiça, pior quando ela atinge a vida de uma criança, porque, no fundo, crianças são seres de inocência comprovada, que não sabem defender a si mesmas, pondo-se, às vezes, alheias à sorte. Crianças de rua cuja experiência nós, de olhos meio indiferentes, não gostaríamos de ter vivido. E se cada um pensasse, nem que por um breve instante, nessas criaturinhas, talvez uma saída e um rumo novo, agora estrelado, ganhariam os menores.
Não poderei esquecer a voz quase de súplica do menino que passava diversas vezes no mesmo trajeto, como se, a cada vez, não tivesse passado por ninguém:
-- Uma água, moço?

03 de agosto de 2014

11 de julho de 2014

Um ser mulher

Se a mulher, durante longo tempo, não teve grande destaque nas sociedades, isto é, se socialmente não foi valorizada como é de seu merecimento, não foi por falta de reconhecimento de seu valor e de suas possibilidades. É o que eu noto no dia a dia, e dou o melhor exemplo, que um professor um dia me fez enxergar.
O exemplo é esse: se uma pessoa qualquer for a casa de seus pais e, chegando lá, estiverem todos da família, menos a mãe, a dona da casa e do lar, essa pessoa, certamente, e sem dúvida, sentirá a casa um tanto vazia, e se exasperará enquanto ela não aparecer. Não, ninguém conseguirá diminuir a importância do pai, dos irmãos e de qualquer outro parente, porém, a figura feminina da mãe, em ausência, chega a ser insuportável. Um pai, um irmão ou um tio, em falta, também chega a ser desconfortável, mas, ainda assim, é incomparável à falta da mãe.
Ainda os marmanjos, quando se veem em casa sozinhos, percebem logo o labirinto em que se metem, pois a mera saída de uma mulher de casa gera o desconforto de que falei anteriormente. E olhe-se que esse desconforto não se remete ao fato de a casa ficar uma bagunça. Se uma dona de casa não estiver no lar, é como se nada ali existisse.
Dizer o quanto uma mulher é imprescindível no mundo usando a figura da mãe é, realmente, referir-se a suas qualidades: doçura, companheirismo, amabilidade, iniciativa, vontade de sempre agradar etc., atributos dos quais o mundo precisa tanto e que os homens não os tem tão bem. 
Vivemos num tempo em que a mulher precisa de reconhecimento. Aquelas mulheres que não saem do pé do fogão, as que lavam e passam roupa, as que vivem seus dias escuros, sem grandes oportunidades, as que são desprezadas, todas essas mulheres precisam saber que são grandes somente pelo fato de existirem em nossas vidas. Porque, no fundo, nós homens sentimos isso e, mesmo que silenciosamente, reconhecemos no interior de nossas almas
E a mulher nunca poderá estar na mesma posição que o homem: deverá estar além, muito além, porque o homem jamais terá a alma que a mulher tem, alma que os poetas já estudaram e nem descobriram toda, alma sempre a florescer, a encantar.



11 de julho de 2014.