14 de agosto de 2017

CRÔNICAS DA CIDADE ------- Poderia ser eu...


A Verônica Regina... Não preciso dizer por quê.

Aconteceu pela boca da noite. Não queiram saber o dia, porque não me lembro. Estava eu ali, sentado à calçada da igreja matriz, esperando o bonde. Ia à cidade próxima, trabalhar. E junto a mim tinha um mói de gente, os estudantes que, no mesmo bonde, iriam para as faculdades. E perto de nós, mas como se não fosse do mesmo mundo, havia o bêbado. O bêbado, não; havia o homem que tinha bebido.
Eu, como sou curioso e atento aos desamparados do mundo (não sei se é a expressão certa), àquilo que guarda porções maiores de poesia, estiquei os ouvidos e, de quando em vez, os olhos, em atenção à fala e aos movimentos do homem – do homem que bebera. Porque como está desamparado do mundo, mas não é, recorre sempre a quem o ampara: a bebida que, ardente, o empurra ladeira abaixo.
E por que bebera dizia umas verdades. E foi o ouvindo que eu o vi pela primeira vez, como um ser humano, de carne, osso, consciência e coração.
E o que ele dizia, na sua voz tonitruante? Falava de si. Falava sobre uma natureza, uma tal natureza que ninguém dominava. Era a sua natureza. Era o que era. Queria dizer que se pudesse, se dominava; queria dizer que se lhe aprouvesse, seria outro homem, bastava ter o poder para tal. Não disse exatamente assim, mas era isso.
Na voz suja pela angústia, falava do Brasil, como a querer falar de cada pessoa: que no Brasil não tem respeito. Era como se bradasse: as pessoas não me respeitam, porque sou como sou, um bêbado, um louco. Mas ele se enganava, pois deveria dizer: não querem me respeitar, porque estou como estou: bêbado, louco. Porque nessa vida, eu digo, como a encarnação de um filósofo existencialista: ninguém é nada; a gente está sendo, por um momento, alguma coisa. Para o bem ou para o mal – eu digo, mais uma vez.
E aquele desabafo me enterneceu tanto, que no caminho, escondido na escuridão do bonde, eu só pensei no bêbado homem. Pensei ainda nos risos e na zombaria que os homens bêbados que também jaziam ali atiravam sobre ele.
Pensei, e continuo pensando, que os bêbados merecem uma chance, pelo menos a chance de serem respeitados. As pessoas, para serem normais, precisam saber que aqueles que parecem um trapo são, na verdade, homens, homens subsumidos pela sorte ou pelo mundo. Eu pensei, e ainda penso, que todos nós necessitamos deixar de beber doses muito grandes desses males que nos embriagam: o orgulho, o desrespeito, a intolerância...
Eu fiquei pensando que poderia ser eu, e não ele, a estar naquela condição; e poderia ser também um parente meu, ou qualquer indivíduo, do menor ao mais alto escalão da sociedade. E martelou na minha cabeça essa ousada ideia: que às vezes a consciência vem melhor para os bêbados e os loucos do que para os que dizem ter o juízo certo. Porque quem zomba dos outros nunca esteve bem de saúde.

13 de Agosto de 2017