26 de setembro de 2020

Canção de Setembro Amarelo


contra a vida
nada posso
a não ser amá-la 
sem alvoroço
fruta saborosa que é
polpa e caroço

do pomar de Deus
eu ganhei essa fruta
para tê-la em meu coração
absoluta

resta-me, assim, amá-la
mesmo às vezes tão dura
pois amor é disfarce
para a amargura  
vinda de soslaio
com a noite escura

amor é leveza
e ensina a tudo suportar
e a vida, sinal do amor de Deus
não se pode recusar

enquanto houver beleza
nada eu temo
nem a guerra
nem a discórdia
nem a força da correnteza
porque tendo amor
pelo fruto divino
qualquer coisa posso enfrentar
com leveza

quero a cada dia 
amar a minha vida até o fim 
porque sei que em algum lugar 
Deus pôs a felicidade 
à espera de mim

10 de junho de 2020

Mil bocados do ensinar


I
lusão que pode passar pela nossa cabeça é a de que os pais possam, nesses tempos de pandemia de covid-19, tornarem-se os substitutos dos professores de seus filhos. Não podem mesmo. Nem devem. Só numa situação: se esses pais forem professores, de formação. E ainda assim não podem usurpar o seu lugar, mas oferecer uma ajuda, porque o aprendizado se dá também por extensão.
Ora, os pais estão em desespero! Primeiro porque a escola remota é só uma simulação, e fantasiosa, da escola real, daquela que tem parede, teto, pátio e, mais importante, gente para todo canto; aquela que tem recreio, merenda escolar, a professora, o professor, os abraços, as saudações; aquela que tem recadinhos, olhares, suspresas; é aquela que tem contação das estórias dos livros, suas fantasias e invenções.
Em segundo lugar, os pais estão acabrunhados porque as crianças e os jovens estão o tempo todo em casa, e ao mesmo tempo que isso é bom não o é por outro lado, porque requer uma criativa gestão do tempo, distribuindo-o em atividades das quais se possa tirar algum proveito. E gestão de tempo, vamos reconhecer, não é nada fácil, nem mesmo para quem é educador ou trabalha com educação.
Para uma mãe ou pai de família a situação é um pouco complicada. De fato, como ser professor dos filhos tendo a luta de todo dia para cumprir? A casa, a roupa, a cozinha, as contas, o mercado... o trabalho, porque este também se tornou remoto. Tudo isso nos leva a crer que a maioria dos pais, mesmo em quarentena, não tem tempo sobrando para ensinar os filhos, imagine disposição...
E fora essas questões, há outra mais importante a ser considerada, o fato de que professor é insubstituível, naquilo que faz, pois ensinar uma pessoa não é só pedir a ela para abrir o livro na página tal e responder as questões. Ensinar é esse exercício de paciência, e também de doçura, exigente por si mesmo de outros gestos sem os quais não tem sentido o ensinar: as explicações, as problematizações, os encorajamentos, um certo olhar sobre as fragilidades... e tudo isso os pais, na sua quase totalidade, não sabem fazer e, além disso, não têm o tempo nem a paciência necessários.
Agora e mais do que nunca, soa importantíssima a mediação, isso que os bons mestres da pedagogia inventaram. Por isso que para os professores tão importante quanto indicar atividades remotas é conversar com os alunos, deixá-los ouvir a sua voz, cansar as cordas vocais que podem, com um pouco de romã, melhorar.
Nessa pandemia, impositora de uma nova forma de ensino e de aprendizagem, cumpre-nos esperar dos pais aquilo que a eles compete: obrigar (porque obrigar também é tarefa de pai e de mãe), não pela força mas pelo convencimento, os filhos a fazerem as atividades, ajeitar-lhes as condições, apoiar, reforçar aquilo que só um professor pode fazer. Porque ensinar, exercício dos mestres, é profissão exigente de mil bocados de competências.

26 de maio de 2020

A casa da memória - lançamento


"Muito há o que fazer/agora é tempo", escrevi num texto de Rota do mundo e outros poemas...

Estou dando largada a este projeto iniciado há muito tempo, desde 2011, quando criei o blog De Letra em Letra, e fui escrevendo nele crônicas. Hoje está aí o resultado: um livro de escrita simples, com uma seleção das crônicas que a meu ver valiam a pena ganhar um lugar na página amarelada de um livro. Contei com comentários de leitores e amigos, postos no blog (alguns tomaram as orelhas do livro).
Enfim... um livro escrito, diagramado e montado pelo próprio autor deve ter as suas imperfeições, mas eu corro o risco, ciente dos aprendizados que hão de surgir.
Gratidão a Luciana Ribeiro e a Verônica Aguiar, pela cumplicidade.
Àqueles que acreditarem valer a pena ler, agora é tempo.

1 de maio de 2020

POEMA DE QUARENTENA


Há turbulência por todos os lados: no que você
tem que fazer, mas não consegue, com medo do que pode vir.
Tem uma turbulência muito grande, mas você não vê.
Dentro do seu coração há um mar agitado,
com ondas perigosas que querem lhe
carregar para o fundo.
Há uma turbulência exagerada no seu silêncio,
porque você tem medo do que já aconteceu
com você e com os seus.
Você se deu conta de que a sua vida parou,
embora não pareça.
Tem medo de enlouquecer, de não ser sobrevivente.
Não consegue esperar, porque desaprendeu
a dominar o tempo e a olhar as horas nos ponteiros.
Aquele tempo que você tanto queria, agora tem,
mas não sabe como gastá-lo.
Parece calmo o tempo. A passagem dos dias
esconde a agitação.
Tem medo, como uma criança tem do escuro.

Tenho um grande desejo que você, na quarentena,
aprenda a criar outras formas de viver.
A sobreviver.
A se esconder no barco até a agitação passar.
A criar algumas alegrias que possam, por instantes,
fugir da turbulência.
Criar defesa no que lhe deixa forte: Deus, arte, natureza...
Aprenda que tudo passa e que nesse meio tempo
você só tem que sobreviver, com fé e esperança.

Todo barco tem como paradeiro a água serena.

Sobreviva!

5 de março de 2020

NOVAS POSTAGAGENS


O grande dia

C
hegou o grande dia!
Depois de tanto esperar, com altas expectativas, veio tão sublime o dia esperado!
Foi aquela correria para que ele chegasse! De dia foi aquela loucura, as crianças correndo para lá e para cá, de um canto a outro da casa, em busca do que fazer. E ficavam pensando, atônitas: se já tivesse chegado o dia, seria tão bom! Mas como o grande dia ainda não chegasse, corriam feito loucas, brincando, só para verem se o tempo passava logo para que o dia sonhado chegasse.
Porém o grande dia não chegava ligeiro...
As crianças pequenas, esbeltas, marotas, riam-se à toa, pensando como o grande dia seria. Iam ver como é que os amiguinhos chegavam, com que cara, com que roupa... iam ver de que cor seria o lápis, de que de espessura o caderno, o desenho da capa...
E mais do que as coisas, o grande dia iria mostrar os sorrisos, as peraltices... Iam ver coisas que só o grande dia pode trazer: iam abraçar seus pares e, dizer, o coração batendo forte: “tive tantas saudades de você, esperei tanto por hoje”; e dizer ainda, na ânsia de matar a saudade: “vamos brincar um pouco, vamos conversar”...
Tinham pesadelos, enquanto a lua posava no alto céu, de que o grande dia não fosse mais chegar.
Perguntavam-se, temerosas: será que fulaninha vai voltar? Quem vai ser minha tia?
Enquanto o grande dia não chegava, punham-se a tudo imaginar, punham-se a criar nas suas mentes férteis o enredo para o dia do reencontro.
Era um sonho bonito, o sonho do grande dia. Porque, afinal, todo mundo queria narrar as suas férias, contar as peripécias, falar dos passeios e, sobretudo, dizer que não aguentava mais ficar em casa.
Tanta era a expectativa, para o grande dia, que todo mundo queria enlouquecer. Enlouquecia a diretora, de um lado para o outro, para arrumar a escola, deixá-la agradável; corria a coordenadora, também louca, querendo acolher os mestres; enlouquecia a secretária, que não parava de ler as fichas de matrícula; enlouquecia a merendeira, procurando na despensa a melhor merenda para o grande dia; enlouquecia o porteiro, que já não aguentava mais ficar longe do portão; e corriam sobretudo os mestres, escolhendo entre mil ideias qual seria a melhor para o primeiro dia de aula...
Até que o grande dia chegou, e tudo aconteceu: os risos, os abraços, os medos, os receios, a vontade de chorar de alegria, as falas, os silêncios, os olhares... a felicidade do retorno.
Mas quem primeiro veio foi o bonde, apontando na estrada, amarelinho que nem uma estrela. As crianças disseram de si para si, ao vê-lo na estradinha: “até que enfim”...
Quem primeiro recebeu um bom dia foi o motorista, mas dentro do bonde só se ouvia algazarra, porque o coração disparava em batimentos, tão apressada e forte estava a emoção.
O grande dia chegou!
Os mestres também eram todos saudade! Por isso se fizeram em abraços, em cumprimentos, em olhares... por isso organizaram tudo para que aquele primeiro dia fosse inesquecível, porque as pessoas mais importantes estavam de volta. As crianças, os alunos estavam voltando... e vinham tão carregadas de vida, que nada podia estragar.
Chegou o grande dia, o dia da volta às aulas! Dia tão esperado, tão desejado! Porque é o dia em que na escola a vida começa a pulsar, porque ela se enche de gente, se enche de criança, de jovem!
O primeiro dia de aula é na escola o dia em que todos nós começamos a viver. É o primeiro dia de aula que nos convence de que as crianças merecem, todos os dias, a nossa atenção, o nosso esforço e o nosso amor.
Avante, que o primeiro dia chegou!




Grande desejo

impossível
À Veronica Regina


Eu queria ter muita alegria para
dar um pouco a quem precisar,
uma alegria que fosse como
o sol no céu a brilhar.

E ajudar a navegar
pelo mar de ninguém
que é vida complicada
a que se quer tanto bem.

E se o barco se afastar
para a distante paisagem
com alegria eu iria carregar
alguém para a margem.

Pudera de alegria eu
estar todo encoberto,
para trazer uma luz em
meio ao deserto.

Para animar alguém que
precisasse tanto,
alguém de cuja vida só
conhece o sabor do pranto.

Eu queria ter grande alegria
para afagar um amigo
e num riso sincero ser
quem sabe um abrigo.

Para quem tem medo da noite
ou do barulho do mar
eu gostaria de uma alegria
que pudesse encorajar.

Eu queria ter muita alegria
para espalhar por aí 
para que os que eu gosto tanto
pudessem sempre rir.

Mas eu não tenho essa alegria,
ela foi-se com o mar pra mais além,
e quando eu vejo alguém tristonho
eu só sei ficar triste também. 




Cântico dos
telhados


Quando chove os
telhados mudos
inventam canções
em choros agudos.

Os pingos de chuva,
molhando as matas,
atravessam a manhã
em serenata.

Quem mais aproveitam
são os passarinhos, e,
em cânticos serenos,
se deitam nos ninhos.

Quando chove os meninos
se põem todo enrolados
em lençóis de seda
escutando os telhados

que cantam as serenatas
e as sonatas e os hinos,
melodias suaves para
se tirar bons cochilos.

Não se sai para a rua
e nem se muda de rota
com medo de se perder
alguma estridente nota.

É mesmo engraçado
quando a chuva vem,
pois ninguém  diria que telhados
mudos cantam tão bem.

Ninguém pensaria que
eles sabem embalar,
pois suas notas pingadas
são canções de ninar.

Quando chove, enfim,
a vida toda vira festança,
porém, aos cânticos dos telhados
ninguém dança.




Avozinha
no jardim


Avozinha entrou
pra olhar a flor,
e se arqueou.

Seus olhos
olharam,
olharam
 a flor,
cheios de
candura e
de amor.

Avozinha entrou
pra ver a flor e
com que olhos
se espantou.

Por que a flor
tinha cor
e tinha sabor.

Avozinha saiu
depois de olhar a flor,
saiu cheia de esplendor.

E tão flor a
vozinha era
que o tempo,
de repente,
tornou-se
primavera. 




Senhorinha

Senhorinha,
senhorinha
está comprando
pimentinha
que é pra pôr
no arroz e
na galinha.

Sim, vai cozinhar
que ela é mãe e
é avozinha,
e aparece
tanta gente
pra comer,
ao meio dia e
à tardinha.

Por isso ela
compra pimentinha.

Senhorinha,
Senhorinha
desceu do Alto,
de sua casinha
e veio se pôr ali
tão bonitinha
a comprar
pimentinha.

Que cozinhar é arte
Arte de todo dia,
dela que é tão feliz
por não ser sozinha.



Confirmação


Eu queria um poema, agora a noite.
Nem que sejam pequenos versos ou frases pela metade.
Sem precisar dizer o que sinto.
Não precisa ser bonito o verso.
Só precisa sair. Depois eu arranjo uma moldura qualquer.
Um poema na noite...
Só para ver se eu sou mesmo gente, ou se pedra.




Não chores
mais
Para Veronica Regina 

Que não chores
mais, menina,
essa água pura
e cristalina,
e para que não
se desfaleça o
brilho de tua retina.

Não chores porque
todo homem
tem uma sina,
que é voltar para
a casa de quem
primeiro o aninha.

Por isso não chores
mais, menina.
Não chores e
ao invés ensaia
um riso,
porque os que se
vão desse mundo
apenas chegam
primeiro ao paraíso.

Eu sei que essa dor,
a dor de perder
quem é parte de nós
é coisa que só
quem já sentiu
pode entender.

Mas se não
dominaes
teu pranto,
que vem minado,
chores um tiquinho
ainda, menos
pela alegria de
ter perdido alguém
é mais por
tê-lo amado.

Não chores menina,
pois quem parte
apenas vira passarinho
e realiza um sonho
que também é nosso:
o chegar ao aconchego
do ninho.


O gato
Ao Tales

Era um gato
malhado
que de um pulo
estava no telhado.

Era um gato
animal
que só queria
mingau.

Era um gato
mansinho
que gostava
de carinho.

Era um gato
envergonhado,
que só fazia
cocô no mato.

Era um gato
gaiato
que lambia
o prato.

Era um gato
legal, que quando
tinha fome
dizia miau.

Era um gato
Menino que
quando aprontava
saía de fininho.

Não era gato mau,
só quando beliscava
e fugia pro quintal.

Não era gato
de besteira,
só quando não comia
comida de geladeira.

Quando uma
gatinha passava
o gato enxerido
a pata acenava.

Era um gato
Preguiça que só
queria dormir
de noite e de dia.

E quando tinha
que tomar banho
fingia que estava
com dor de barriga.




Chove,
chuva


chove, chuva
chove, chuva

para que a
tarde seja
leve como
a pluma.

chove, chuva
chove, chuva

para que a
alegria dos
mais simples
não se exuma.

chove, chuva
chove, chuva

os campos
se encherão
de saudosa
bruma.

e as cigarras
vão ninar...

chove, chuva

crianças com
canções noturnas.

chove, chuva.